sábado, 27 de outubro de 2012

'Dublinenses' e 'Um Retrato do Artista Quando Jovem'

   A nossa vida está sempre nos pondo à prova. Sabe aquelas semanas em que as coisas parecem não caminhar conforme planejamos, em os dias parecem noites, em que você se sente cansado e que, quando parece que as coisas ruins, enfim, vieram a acabar, elas, de fato, pioram? É como a onda do mar quando este está enchendo; você tenta escapar da corrente que te arrasta e, quando parece que escapou e finca os pés em areias mais firmes, eis que uma forte onda está logo atrás de você para lhe trazer o desequilíbrio e, por fim, a queda na água. E, ao engolir água salgada e permitir, sem querer, que a água entre pelo nariz, este arde de forma tal que parece que alguém está dizendo: '- Cuidado; ao menor sinal de erro ou descuido, vai doer em algum lugar!' E o pior é quando nos chega uma péssima notícia no instante particular em que um grande problema tinha acabado de ser resolvido...
   Mas estas 'provas' em nossa vida devem ter um profundo sentido; a vida não deve ter sentido algum quando não se tem mais nada a enfrentar, quando não se exercita o que se aprendeu com os erros anteriores, quando já se conquistou tudo o que se queria (nunca se conquista tudo o que se quer, pois, após cada conquista, parecem surgir novas perspectivas, novas prioridades, e nunca se está satisfeito; isto parece estar na natureza do ser humano). E que jeito melhor de aprender a contornar as grandes provas da vida do que mergulhar nela por inteiro, do que viver 'experiências' na vida e com a vida! Antoine de Saint-Exupéry escreve no primeiro e inspirador parágrafo de Terra dos Homens: "Mais coisas sobre nós mesmos nos ensina a terra que todos os livros. Porque nos oferece resistência. Ao se medir com um obstáculo o homem aprende a se conhecer; para superá-lo, entretanto, ele precisa de ferramenta. Uma plaina, uma charrua. O camponês, em sua labuta, vai arrancando lentamente alguns segredos à natureza; e a verdade que ele obtém é universal. Assim o avião, ferramenta das linhas aéreas, envolve o homem em todos os velhos problemas."Neste belíssimo livro, autobiográfico, o autor nos mostra o que aprendeu ao desbravar o mundo do correio aéreo; mostra a importância, em sua vida, de sua experiência com o avião.


Antoine de Saint-Exupéry

   E o importante é que se tenha uma consciência de que o ambiente nos impregna com sua rotina, com sua insistência, e que dela tentamos sair um pouco, mas muitas vezes esta tentativa é frustra. Sobre isso escreveu James Augustine Aloysius Joyce, mais conhecido como James Joyce. Este autor nasceu no subúrbio de Dublin em 2 de fevereiro de 1882 no meio de uma família católica de classe média. A condição financeira de sua família viria a declinar logo após seu nascimento, e durante sua vida chegou a viver em várias localidades, tendo falecido em Zurique em 13 de janeiro de 1941. Sua primeira obra publicada foi Música de Câmara (Chamber Music), em 1907, como um conjunto de poesias. Em 1914, ele viria a publicar um livro que tinha desenvolvido mesmo antes do anterior: Dublinenses (Dubliners); este livro de contos continha muitas analogias da sociedade de então, embora tenha sido escrito muitos anos antes de ser publicado, e isto levantou a suspeita de que os contos teriam um cunho de difamação, com situações grandemente similares a lugares e personagens reais. Embora neste livro o autor ainda não tenha usado aquilo que o caracterizaria para a posteridade, o fluxo de consciência (que alcançaria sua aplicação máxima em obras grandes posteriores, como Ulysses e Finnegans Wake, mas que já se inicia com Um Retrato do Artista Quando Jovem), a obra é magistral, com contos que contem analogias mesmo para situações mais recentes na vida de todos nós, situações cotidianas e que, ao serem feitas as devidas analogias, permite-se que uma centelha de esperança se apresente após uma crítica consistente daquilo que nos permeia.


James Joyce

   É importante que se perceba que a Irlanda permeia toda a obra do autor, especialmente a história político-cultural do início do conturbado século XX. Neste período, os irlandeses buscavam um resgate da língua e cultura tradicional de seus precedentes, numa espécie de 'Renascimento' irlandês, tentando se desvencilhar e se libertar da influência da Grã-Bretanha em todos os sentidos. Em última análise, este renascimento, iniciado no final do século XIX, deu ao irlandês um maior sentido de orgulho na sua identidade. A morte de um grande líder de todo esse movimento, Charles Stewart Parnell, em 1891, bem como todos os escândalos envolvendo este (como o de adultério, ao ter se casado com a esposa de um grande amigo após algum tempo de vida como amantes), frustrou as lutas pela independência e unidade da Irlanda. Com isto, o país assistia a uma divisão cada vez maior entre católicos e protestantes, conservadores e nacionalistas. E tal panorama político, social, cultural e religioso forma um cenário para a escrita complexa de Joyce, que apesar de ter morado mais tempo pelo continente europeu, fora da Irlanda, jamais deixou de tratar de assuntos sobre sua terra natal, tendo sido o foco de todo o seu trabalho literário.
   Em Dublinenses, portanto, é como se o ambiente tentasse aprisionar a consciência dos personagens, que, em várias passagens do livro, dão mostras de que de fato existe tal consciência em cada um deles, mas com um predomínio do ambiente a se sobrepujar sobre a vontade que têm os personagens de irem por outros caminhos, de se libertarem para algo diferente em suas vidas. O livro contém 15 contos que retratam a vida na capital irlandesa; Joyce se concentra em crianças e adultos que contornam a classe média, como empregadas domésticas, empregados de escritório, professores de música, estudantes, meninas de loja, vigaristas e empresários sem sorte. O autor imaginou sua coleção como um espelho com que o irlandês poderia se observar e se estudar. Na maioria das histórias, usa-se uma voz narrativa isolada, mas altamente perceptiva, que exibe em detalhes precisos essas vidas para o leitor. Em vez de dramas intrincados com enredos complexos, essas histórias esboçam situações cotidianas em que muito não parece acontecer (por exemplo, um menino visita um bazar, uma mulher compra doces para festas de férias, um homem reencontra um velho amigo com algumas bebidas, etc.). Embora estes eventos não pareçam ser muito profundos, as revelações intensamente pessoais e muitas vezes trágicas dos personagens certamente o são. As histórias em Dublinenses  perscrutam as casas, corações e mentes de pessoas cujas vidas se conectam e se misturam através do espaço compartilhado e espírito de Dublin. Um personagem de uma história vai mencionar o nome de um personagem de outra história, e algumas histórias, muitas vezes, têm configurações que aparecem em outras histórias. Tais conexões sutis criam um sentido de compartilhamento de experiência, e evoca um mapa da vida em Dublin que Joyce voltaria a repetir várias e várias vezes em suas obras posteriores.


Capa de 'Dublinenses'

   Alguns temas fundamentais se apresentam em Dublinenses. A prisão da rotina é o mais importante e explícito destes temas; rotinas repetitivas e restritivas, detalhes mundanos de cada um marca a vidas dos personagens no livro, prendendo-os em círculos de frustração, contenção e violência. As consequências mais consistentes de se seguir rotinas mundanas são a solidão e o amor não correspondido. A circularidade da vida desses dublinenses os prende em armadilhas, impedindo-os de serem receptivos a novas experiências e atingir a felicidade. O desejo de fuga é outro tema evidente; os personagens são cidadãos da capital irlandesa, mas muitos desejam fugir e se aventurar em outros países; tais anseios, entretanto, nunca chegam a ser realizados pelos protagonistas das histórias. Mais frequentemente do que oferecer uma fuga literal de um lugar físico, as histórias tratam de oportunidades para escapar de restrições menores, mais pessoais. Assim, o impulso para escapar de situações infelizes define Dublinenses, bem como a incapacidade de efetivamente realizar tal processo. Um último grande tema é a intersecção entre a vida e a morte. Interessantemente, o livro se inicia com 'As Irmãs', que explora a morte e o processo de lembrar dos mortos (inclusive, este conto inspirou um filme chamado Dúvida, de 2008, com os grandes Philip Seymour Hoffman e Meryl Streep) e termina com 'Os Mortos', que invoca a calma silenciosa da neve que cobre tanto mortos quanto vivos. Estas histórias enfatizam o foco consistente sobre o ponto de encontro entre a vida e a morte. A morte lança uma sombra sobre o presente, chamando a atenção para os erros e falhas que as pessoas cometem, geração após geração. Essa sobreposição ressalta o interesse de Joyce em ciclos de vida e sua repetição, além de sua preocupação em descrever os que seriam os 'mortos vivos' (pessoas que demonstram pouca excitação ou emoção ao seguirem pela vida, exceto quando se trata dos empecilhos e atrasos cotidianos). A monotonia da vida em Dublin leva os dublinenses a viverem em um estado suspenso entre a vida e a morte em que cada pessoa tem um pulso, mas é incapaz de profunda e efetiva ação de suporte à vida.
   Os motivos que Joyce apresenta para desenvolver os temas também são muito interessantes. Um deles é a paralisia; na maioria das histórias de Dublinenses, um personagem tem um desejo, enfrenta obstáculos para atingi-los, então, finalmente, cede e para, de repente, toda a ação. Estes momentos de paralisia mostram a incapacidade dos personagens para mudar suas vidas e reverter as rotinas que dificultam seus desejos. Ao longo do livro, este estado sufocante aparece como parte da vida diária de Dublin, e que todos os dublinenses finalmente reconhecem e aceitam. Outro motivo desenvolvido de forma cabal é o da epifania (epifania é como aquele momento do 'Eureka', de Arquimedes, embora possa ter uma conotação mais religiosa); os personagens do livro evidenciam momentos de pequenas ou grandes revelações nas coisas do cotidiano, mas estes momentos não trazem novas experiências ou possibilidade de reforma, como poder-se-ia esperar de tais momentos. Pelo contrário, estas epifanias permitem aos personagens entenderem melhor suas circunstâncias particulares, geralmente cheias de tristeza e rotina, mas para as quais posteriormente retornam com resignação e frustração. Algumas vezes, a epifania ocorre somente no plano narrativo, como se o narrador estivesse mostrando ao leitor que o personagem houvera acabado de perder um momento de auto-reflexão. Este motivo destaca a rotina repetitiva de esperança e aceitação passiva, que marca cada um dos retratos, bem como a condição geral humana. Mas o livro não é de todo trágico, e no último conto, 'Os Mortos', o protagonista, Gabriel, tem uma revelação que parece mostrar ao leitor uma esperança de que as coisas, enfim, mudarão, e apresenta-se uma conotação mais otimista para esta revelação. Um outro motivo é o da traição; engano e traição é uma cicatriz presente em quase todos os relacionamentos no livro, demonstrando o desconforto com que as pessoas tentam se conectar umas com as outras, tanto platonicamente quanto romanticamente. Este ato evoca não apenas o sentido de deslocamento e humilhação que todos os dublinenses temem, mas também a tendência das pessoas para categorizarem muitas ações como 'traição', a fim de transferir a culpa de si para os outros. Um último grande motivo é o da religião; referências a sacerdotes, crença religiosa, experiência espiritual, aparecem ao longo do livro, e acabam retratando uma pintura pouco lisonjeira da religião. A presença de tantas referências religiosas sugere que os dublinenses ficam presos na armadilha de ter que ficar pensando na vida após a morte, e não em suas vidas como estão.
   Os símbolos usados para representar conceitos no livro são muito interessantes. Um deles mais evidente é o da janela; no livro, as janelas geralmente evocam ou antecipam encontros e situações que estão prestes a acontecer. As janelas também marcam o limite entre o espaço interno e o mundo externo, e através delas os personagens observam suas próprias vidas e as vidas dos outros. Outro símbolo muito marcante é o do anoitecer e da noite; a Dublin de Joyce é continuamente escura. Não há pancadas de luz solar ou paisagens alegres para iluminar as histórias do livro; em vez disto, um espectro de cinza e preto ressalta o tom sombrio da vida dos personagens. Estes cenários escuros evocam a 'meia-vida' ou o estado intermediário que os personagens do livro ocupam, física e emocionalmente, sugerindo a mistura de vida e morte que marca toda a história. Neste estado, a vida pode até existir e continuar, mas a escuridão torna a experiência dos dublinenses terrível e condenada. Um último e marcante símbolo é o da comida; quase todos os personagens do livro são apresentados em algum momento comendo ou bebendo, e na maioria dos casos a comida serve como um lembrete tanto para a ameaça do tédio da rotina como para as alegrias e dificuldades da união. Joyce utiliza esses momentos com a comida para retratar seus personagens e suas experiências através de uma substância que tanto sustenta a vida como simboliza suas restrições.
   Por tudo isto, Dublinenses é um livro primoroso, que deve ser lido e utilizado como manual para a vida, pois ensina os perigos da rotina mas que não tira a esperança, no seu momento mais final, de que a consciência é mais forte e que pode se sobrepujar à vontade do ambiente que envolve cada um de nós. Ainda, esses retratos podem muito nos ensinar sobre o que acontecerá se nos rendermos à prisão de tal rotina de forma flutuante e sem crítica. E, o mais importante, o livro sugere que é possível que haja um rumo determinado por nós em nossas vidas, e não determinado pelo ambiente. Livro deslumbrante, para ler e aprender! Digo e repito: livros são vivências que permitem que aprendamos sem que precisemos sofrer, de fato, uma experiência! Permitem que se conheçam culturas, sociedades e mundos sem que, de fato, se viva ou conviva com estes em seus ambientes.
   Já em Um Retrato do Artista Quando Jovem (A Portrait of the Artist as a Young Man) o sentido da ideia muda; enquanto em Dublinenses o ambiente impõe uma análise consciente do mesmo aos personagens, embora nem sempre estes tenham tal consciência, em Um Retrato do Artista Quando Jovem, o personagem principal faz emergir sua consciência sobre o ambiente, dando direção autêntica para sua vida ao longo do livro, e apresentando várias experiências nítidas que o levaram a seguir a sua grande vocação: de ser artista (mais precisamente no campo da arte literária). O que é bastante interessante e que dá sentido a tudo é que, apesar de ser ficção, o livro tem forte cunho auto-biográfico, como se Joyce estivesse mostrando várias situações em sua vida que o levaram a escolher ser escritor. Publicado em 1916, o livro apresenta a história de um dos personagens mais interessantes da literatura: Stephen Dedalus. Sua vida vai sendo demonstrada de modo profundo, com a trilha que o leva à transição para a maturidade e o autoconhecimento. A narrativa é apresentada de forma magistral com a técnica do 'fluxo de consciência' desenvolvido pelo próprio autor, podendo ser entendida como uma espécie de 'monólogo interior'. O que se apresenta são os pensamentos do personagem, e toda as conexões muitas vezes incrompreensíveis que estes podem desenvolver. Muitas vezes, isto torna várias passagens do livro de difícil compreensão após uma leitura despreocupada e sem a devida atenção, exigindo alguns repaginadas para o melhor entendimento (é como se o autor apresentasse o personagem dizendo alguma coisa ao mesmo tempo em que vários e diferentes fluxos de seu pensamento fossem sendo descritos, muitas vezes não existindo uma conexão lógica nestes, assim como é de fato na realidade, e você não sabe se o personagem pensa e está descrevendo o pensamento ou algo que realmente existe e se o que se encontra no parágrafo seguinte trata do mesmo pensamento do parágrafo anterior); entretanto, não é um livro difícil de entender em todos os momentos, e o que se obtém de aprendizado com o mesmo, e com algumas belíssimas passagens que ele contém, tornam este um livro arrebatador e profundo! Obra-prima essencial!


Capa de 'Um Retrato do Artista Quando Jovem'   

   Os temas são engrandecedores. O primeiro deles que é evidente é o desenvolvimento da consciência individual; a técnica do 'fluxo da consciência', em que o pensamento é apresentado de dentro do personagem, e não como sendo a descrição de sensações do ponto de vista de um observador externo, faz do livro um desenvolvimento da mente de Stephen. Até o final do romance, Joyce desenvolve o retrato de uma mente que atingiu a idade adulta emocional, intelectual e artística. O desenvolvimento da consciência de Stephen se torna mais interessante na medida em que, sendo este um retrato do próprio autor, nos dá uma visão para o desenvolvimento de um gênio literário. As experiências de Stephen apontam para as influências que levaram Joyce a ser o grande autor que ele é considerado atualmente. Outro tema que se apresenta é o das armadilhas do extremismo religioso; educado em uma família católica devota, Stephen inicialmente atribui uma crença absoluta na moral da igreja. Como um adolescente, esta crença leva a dois extremos bastante opostos, sendo que ambos são prejudiciais: na primeira, ele cai no pecado extremo, repetidamente dormindo com prostitutas e virando completamente as costas para a religião (embora pecando voluntariamente, ele sempre está consciente de que isto viola os preceitos da igreja); então, quando é exposto ao belíssimo sermão do padre Arnall (só este já vale o livro...), ele retorna ao catolicismo, saltando para o outro extremo, tornando-se um indivíduo perfeito, chegando à proximidade da devoção religiosa e da completa obediência aos preceitos da igreja. Em um determinado momento, entretanto, Stephen acaba percebendo que esses dois extremos são falsos e prejudiciais; ele não quer levar uma vida completamente debochada, mas também não concorda com o catolicismo austero por achar que isto não permite uma experiência completa do ser humano. Stephen finalmente chega a uma decisão quando vê uma bela jovem se banhando nas águas do mar; para ele, a jovem é um símbolo de pura bondade e da vida vivida ao máximo. Um outro tema é o do papel do artista; no final do romance, Stephen acaba deixando sua família para trás e seguindo para o exílio, mas com a ideia de dar voz à sua comunidade, e jamais negando-a. Joyce sugere que o verdadeiro artista é uma figura que deve viver isolada, pelo menos em algum momento de sua vida. Outro grande tema é o o da necessidade de autonomia da Irlanda; Stephen acaba entendendo seu povo como pacato e muito subserviente de fato. Usando a linguagem emprestada do inglês, ele planeja escrever num estilo que será tanto autônomo da Inglaterra como uma espécie de verdade para o povo irlandês.
   Alguns motivos são muito interessantes, demonstrando o gosto e apreço profundo de Joyce pela língua, pelas letras. Um deles são as músicas; o cantar é apresentado de forma recorrente no livro, e isto representa um gosto particular de Stephen pelos sons das palavras; na verdade, a música apela para a parte de Stephen que quer viver a vida ao máximo. Vemos este aspecto da música perto do fim do romance, quando ele, de repente, sente uma paz ao ouvir uma mulher cantando; a voz dela o leva a se lembrar de sua conclusão em deixar a Irlanda e celebrar a vida como escritor. Outra demonstração de apreço de Stephen pelos sons é a frequente apresentação de orações, músicas seculares e frases em latim; estes ainda servem para demonstrar o verdadeiro estado de espírito do personagem em vários momentos do livro. Um motivo bastante interessante é o do vôo; o próprio nome do personagem, Stephen Dedalus, remete à ideia de vôo. Na mitologia grega, Dédalo, é o artesão que construiu o Labirinto de Creta para o rei Minos. Minos mantém Dédalo e seu filho, Ícaro, presos na ilha de Creta; mas Dédalo faz planos para escapar com um conjunto de penas, cordéis e cera, construindo um par de asas para si e outro para seu filho. Dédalo escapa com sucesso, mas Ícaro voa muito alto, mais perto do sol, e este derrete a cera de suas asas,  que o leva a cair no mar e, por fim, à morte. No contexto do livro, podemos ver Stephen como ambos, Dédalo e Ícaro, uma vez que o pai de Stephen também tem por sobrenome Dedalus. Com essa referência mitológica, Joyce implica que Stephen deve sempre equilibrar o seu desejo de fugir da Irlanda com o perigo de superestimar suas próprias habilidades, o equivalente intelectual do vôo de Ícaro muito perto do sol. Para diminuir os perigos de tentar ser grande muito cedo, Stephen gasta um bom tempo na universidade desenvolvendo sua teoria estética completamente antes de, enfim, poder deixar a Irlanda e começar a escrever a sério. Os pássaros que aparecem na parte final do último capítulo são interpretados como um símbolo de que ele se encontra completamente formado como artista e de que é chegada a hora de tomar vôo próprio. Genial!


Ícaro

Ícaro e Dédalo

   Um importante símbolo do livro é o da personagem Emma. Ela aparece apenas de relance durante a maior parte da vida do jovem Stephen, e este nunca chega a conhecê-la como pessoa nesta fase de sua vida. Em vez disto, ela se torna um símbolo de amor puro, não contaminado pela sexualidade ou realidade. Ele adora Emma como o ideal de pureza feminina. Quando ele passa por sua fase de devoção religiosa, ele imagina a recompensa por sua piedade na Terra como a união com ela no paraíso. No final, na universidade, acontece uma conversa entre eles de fato, quando Stephen percebe que ela é uma pessoa real, amigável, pouco comum, mas de forma alguma a deusa idealizada antes por ele. Esta visão mais equilibrada de Emma espelha o abandono de Stephen dos extremos do pecado absoluto e da devoção desmedida, em favor de uma vida de equilíbrio, tendo como única devoção aquele dedicada à beleza.
   Por fim, Um Retrato do Artista Quando Jovem é um livro primoroso, que deve ser lido como deleite literário mas também como instrumento de aprendizado profundo, servindo como referência real a ser aplicada nas situações da vida em que o ambiente procura nos vencer a todo custo, e em que um problema que se resolve nunca é o último, sendo, na verdade, e não poucas vezes, sucedido imediatamente por um outro. O ser humano, como apresentado nos livros, principalmente no segundo deles, deve ser maior do que o ambiente, e a consciência deve estar acima deste, determinando o rumo consistente da vida de cada um de nós. Os obstáculos nos ajudam a crescer, devendo existir para que não nos acomodemos no longo, e por outro lado breve, caminho da vida. Ainda, estes livros são o preâmbulo perfeito da grande obra-prima de James Joyce, o colossal Ulysses, que obviamente ganhará uma postagem a parte neste humilde blog. Leituras obrigatórias!
   
 
 
 
 
   
   
   

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

18 de Outubro - Dia do Médico

   Hoje, no dia em que se comemora o Dia do Médico, e lembrando-me de que faz algo em torno de 16 anos quando optei por trilhar este caminho, vem-me à memória vários momentos em que me deparei com a arte imitando a vida, mais particularmente quando me vi diante de telas, filmes, vídeos, livros e textos que me inspiraram em cada momento deste caminho, fazendo-me nunca esquecer de importantes e gratificantes conceitos que sedimentam esta belíssima profissão. Para comemorar este dia, permitam-me compartilhar algumas destas formas de arte; é uma forma, outrossim, de me fazer lembrar de bons momentos, únicos e engrandecedores em meu caráter, minha conduta, enfim, em minha vida.
   A primeira recordação é a mais recente. Na primeira postagem neste blog, coloquei uma tela muito bonita de um artista plástico britânico chamado Sir Samuel Luke Fields, e que é conhecida por The Doctor. O cronista Rubem Braga escreveu uma belíssima reflexão sobre este quadro em um momento de sua vida. É algo para guardar na alma! Sublime!

The Doctor, de Luke Fields (1891)
"O Médico"
                                                     Rubem Braga
"... e, de repente, um canto de minha memória que o esquecimento escondera se iluminou,
e eu o vi de novo, do jeito como o havia visto pela primeira vez: o quadro.
Vejo-me, menino, na sala de espera do consultório médico.
Estou doente. Meus olhos assustados passeiam pelos objetos à minha volta, até que o encontram.
Pendia, solitário, na parede branca. Levanto-me e me aproximo, para ver melhor.
Leio o nome da tela: O médico.
É a sala de uma casa. Cena familiar.
Tudo está mergulhado na sombra, exceto o lugar central, iluminado pela luz de um lampião.
Mas a luz é inútil. O lugar mais iluminado é o mais obscuro: uma menina doente.
A clareza dos detalhes só serve para indicar o lugar onde o mistério é mais profundo.
Quando a luz se acende sobre o abismo, o abismo fica mais escuro.
Seus olhos estão fechados, mergulhados em um esquecimento febril.
Nada sabe do que acontece à sua volta. Por onde andará ela?
Infinitamente longe, num lugar ignorado, onde gesto algum pode tocá-la.
Seu braço pende, inerte, sobre o vazio.
O lampião ilumina a menina doente. Mas os olhos de quem examina a tela com atenção desconfiam e percebem a presença de uma outra luz.
Do lampião a querosene
sai uma outra luz que ilumina a menina.
Mas a menina doente sai da luz que ilumina a cena inteira: luz triste, luz sombria,
que inunda a sala com o seu mistério: a luz da morte. Também a morte tem a sua luz.
O artista escolheu de propósito. Se, em vez de uma menina, fosse um velho, a morte seria uma outra.
A morte tem muitas faces. A morte dos velhos, por mais dolorosa que seja,
é parte da ordem natural das coisas: depois do crepúsculo segue-se a noite.
A morte dos velhos é triste, mas não trágica. É conto o acorde final de uma sonata.
O fim é o que deveria ser. Mas a morte de um filho é uma mutilação.
A luz da vida é alegre, brincalhona, esbanja cores,
vive de uma exuberância que pode se dar o luxo de desperdiçar.
Todos os objetos ficam coloridos ao seu toque –
os grandes e os pequenos, os importantes e os insignificantes.
A luz da morte, entretanto, só ilumina o essencial. Naquela sala se sabe a verdade essencial.
O universo inteiro está encolhido. O centro absoluto, em torno do qual giram todos os mundos,
é uma menina doente. De que valem as montanhas e os mares, os homens, seus negócios,
seus amores e suas guerras, se naquele quarto uma menina luta contra a morte?
Num canto, o casal, pai e mãe, imagens da impotência. Nada sabem fazer, nada podem fazer.
A mãe está debruçada sobre uma mesa. Seu rosto está mergulhado no vazio. Só lhe resta chorar.
O marido, de pé, pousa a mão sobre o ombro da esposa. Mas imagino que ela não a sente.
Naquele momento ela não é nem esposa, nem dona de casa: é mãe, apenas mãe.
O gesto do marido, que quererá dizer?
Será uma tentativa de consolo, como se dissesse: “Eu estou aqui...”? Pobre consolo!
Ou será o contrário, uma discreta busca de apoio, como se dissesse:
“Também eu estou desamparado!”? Tudo é uma despedida pronta a cumprir-se.
E o amor, a coisa mais alegre, revela-se como a coisa mais triste.
Diante da morte, o amor ganha cores trágicas.
O pai está vestido com um pesado capote.É estranho! Por que tanto agasalho dentro de casa?
O capote nos conta de sua viagem pelo frio, o desamparo em busca de socorro.
Doutor, venha depressa! A minha filha... Voltou e nem se lembrou de tirá-lo.
Pois que importa o desconforto de um capote dentro de casa quando a filha luta com a morte?
Ao lado da menina,um estranho,assentado: o médico. Pois o médico não é um estranho?
Estranho,sim,pois não pertence ao cotidiano da família.
E,no entanto,na hora da luta entre o amor e a morte,é ele que é chamado.
O médico medita.Seu cotovelo se apóia sobre o joelho,seu queixo se apóia sobre a mão.
Não medita sobre o que fazer.As poções sobre a mesinha revelam que o que podia ser feito
já foi feito. Sua presença meditativa acontece depois da realização dos atos médicos,
depois de esgotados o seu saber e o seu poder.
Bem que poderia retirar-se,pois que ele já fez o que podia fazer... Mas não.
Ele permanece. Espera.Convive com a sua impotência.Talvez esteja rezando.
Todos rezamos quando o amor se descobre impotente. Oração é isto: essa comunhão com o amor,
sobre o vazio... Talvez esteja silenciosamente pedindo perdão aos pais por ser assim tão fraco,
tão impotente, diante da morte.
E talvez sua espera meditativa seja uma confissão: - Também eu estou sofrendo...
Amei esse quadro a primeira vez que o vi,sem entender.
Talvez ele seja a razão por que, quando jovem,por muitos anos,sonhei ser médico.
Amei a beleza da imagem de um homem solitário,em luta contra a morte.
Diante da morte todos somos solitários. Amamos o médico não pelo seu saber,
não pelo seu poder,mas pela solidariedade humana que se revela na sua espera meditativa.
E todos os seus fracassos (pois não estão, todos eles,
condenados a perder a última batalha?) serão perdoados se;
no nosso desamparo,percebermos que ele, silenciosamente,permanece e medita,junto conosco.
Hoje o quadro já não mais se encontra nas salas de espera dos consultórios médicos. A modernidade transferiu a morte do lar,lugar do amor,para as instituições,lugar do poder.
E os médicos foram arrancados dessa cena de intimidade e colocados numa outra
onde as maravilhas da técnica tornaram insignificante a meditação impotente diante da morte.
Mas a bela cena não desapareceu.Sobrevive em muitos,como memória e nostalgia,
em meio às frestas das instituições. A esses médicos,cujos nomes não preciso dizer
(pois eles sabem quem são), que silenciosamente meditam
diante do abismo misterioso da tragédia humana,ofereço minha própria meditação impotente.
Olho para eles com os mesmos olhos do menino que, pela primeira vez,
se defrontou com a beleza dessa cena,na sala de espera de um consultório."


   Outras fontes inspiradoras sobre a nossa profissão são obras literárias, que existem às dezenas! Recordo-me de ter lido alguns livros que foram importantes para sedimentar o gosto pela essência da medicina, que é a pura gratidão. Os livros seguintes são fontes que inspiram quem deseja seguir por este caminho. O primeiro de que me lembro é um grande livro de um autor brasileiro muito importante: Olhai os Lírios do Campo, de Érico Veríssimo. É um livro que vai descrevendo toda a trajetória da profissão, desde a dificuldade em ser aprovado para uma Faculdade de respeito em nosso país até as coisas que vão sendo deixadas de lado durante o percurso, mas que vão sendo constantemente retomadas na mente e o conflito é inevitável. É, em essência, um livro que mostra a busca de si mesmo, o que é ser autêntico, tendo inúmeros temas para discussão, sendo comovente e com passagens tocantes. É um livro de que não irei esquecer! Vale a releitura!




   Outro livro muito marcante para nós médicos é O Físico, de Noah Gordon. Conta a história de Rob Cole, um personagem com um misticismo que o envolve e que quer a todo custo buscar a verdade em tudo, lutando para aprender e seguir a essência da profissão médica no século XI. Vários conflitos também vão sendo apresentados, e é muito interessante como a Medicina da Pérsia da época, do grande médico Avicena tem uma estrutura de aprendizado que lembra muito as Universidades com cursos médicos mesmo mais recentes. Um livro realmente importante e que li no início do meu curso médico. Também vale a releitura.




   Um outro livro, de extrema importância para quem quer se apaixonar pela Medicina em sua essência, com os conflitos reais que vão surgindo ao longo da carreira, e eterna busca pelo que é certo e pelo que deve ser feito em detrimento dos interesses pessoais, pela busca por uma vida digna diante do contexto do trabalho médico, e, principalmente, o gosto pela pureza e simplicidade da gratidão das pessoas diante do ato médico, é A Cidadela, de A.J. Cronin. É muito marcante (o autor, um escocês, entende bem todos os conflitos da profissão, haja vista que era médico; escreve muito bem)! O realismo é chocante; e, diante de todas as dificuldades, o personagem principal atinge seu tão almejado sucesso na carreira; mas, ele fica satisfeito? É o fim de tudo? Este livro é muito comovente! Vale demais ler!




 
   Um último livro marcante para todos os médicos que estão iniciando a carreira é o do Dr. Adib Jatene, chamado Cartas a Um Jovem Médico. Com uma linguagem muito agradável e clara, ele relata toda a sua história na Medicina, desde o início da carreira quando ainda nem existia Cirurgia Cardíaca como a conhecemos hoje, até os tempos mais modernos, como todo o estouro no número de Escolas Médicas pelo país. Mas, relatando toda a sua experiência na profissão, nos mostra ensinamentos fortes e bastante proveitosos. É um livro muito bom para quem quer trilhar este caminho ou para quem já o trilha, mas está apenas começando. A sua sensibilidade é tocante na descrição dos capítulos do livro. Vale a leitura!





   No campo da sétima arte, a inspiração atinge maiores proporções, pois voa mais rápido e é capaz de atingir maior número de pessoas sem a menor dúvida. Seria capaz de dedicar várias postagens neste blog sobre cada um dos filmes que tratam do tema Medicina (escreveria sobre uns 20 ou 30 filmes a respeito do tema sem a menor dúvida), mas ficaria muito grande! Permitam-me escrever rapidamente sobre 6 deles.
   O primeiro seria, para mim, o melhor de todos: Patch Adams - O Amor é Contagioso, de 2001. Se alguém que está lendo este blog já assistiu a este filme e não se emocionou, provavelmente há algo de muito errado com esta pessoa; no mínimo, não prestou atenção alguma ao assisti-lo. É um filme já consagrado sobre a questão de o médico lidar bem com as pessoas, de não serem meros técnicos e se importarem demais com o lado humano dos pacientes. E chama mais a atenção e aumenta nossa comoção quando se percebe que é baseado em fatos. Este não precisa de mais comentários. Uma obra-prima! Se alguém o assistir e não quiser ser médico, é porque tem medo de sangue! :)




   Outro filme fascinante e envolvente é o que apresenta a biografia real de Vivien Thomas, o afro-americano que, na década de 1940, mesmo não sendo médico de formação, desenvolveu a técnica para correção da Síndrome do Bebê Azul (na verdade a Tetralogia de Fallot, que a médica Helen Taussig vinha estudando), juntamente com o cirurgião Alfred Blalock no Johns Hopkins Hospital, nos Estados Unidos da América. O procedimento, que ficou conhecido como Shunt de Blalock-Taussig, foi um marco na Cardiologia Pediátrica, e a dramatização de toda a descoberta, inclusive se demonstrando o importante papel de Vivien, é dramatizado de forma emocionante na película. O título em português, Quase Deuses, é pertinente, mas prefiro o título original, qual seja Something The Lord Made (ou 'algo que o Senhor criou'); o título em inglês traduz mais a importância divina na ajuda aos seres que, na Terra, compartilham sofrimentos de forma altruísta e, guiados por aquele que está lá em cima, ajudam a fazer o bem pelos que sofrem. É um filme excepcional, emotivo, e, sobretudo, de reconhecimento!



 
   Outro belíssimo filme, mais profundo no tocante à visão do paciente, é um filme de 2001 chamado Uma Lição de Vida. Uma professora universitária solene e austera, um tanto fria, descobre em idade produtiva que apresenta um câncer de ovário avançado. Este filme retrata muito a mudança de perspectiva que a morte causa ao ser algo real, quando o mistério do quando e do como se irá morrer já não mais existe. As reações da protagonista à doença são analisadas, além de ser colocada em pauta a interação com um médico que age em função dos resultados e outro que era um ex-aluno dela. Como curiosidade, em inglês, o filme se chama Wit, que pode ser traduzido por inteligência, humor, perspicácia, sagacidade, talento, destreza, compreensão, entre outros; interessante que, ao assistir ao filme, percebe-se que cada um destes significados pode se encaixar no tema. Espetacular! A partir deste filme, interessei-me mais pelo poeta metafísico inglês John Donne, este que inspirou tanta gente, inclusive o grande escritor Ernest Hemingway.




   E, o que falar de Um Golpe do Destino (em inglês The Doctor; mais direto impossível)? Este filme é sempre discutido nas Faculdades de Medicina e Psicologia pelo país (não duvido que pelo mundo). O que acontece quando um médico, sentindo-se onipotente, bem sucedido, de repente se descobre com uma doença sempre chocante como é o câncer (no caso do filme, de laringe) e é colocado na frágil posição do paciente? Como paciente, mais uma vez, percebe-se uma mudança de perspectiva (aliás, a vida tem muito disso: muitas vezes, as coisas não mudam, mas uma simples mudança de perspectiva, faz tudo fazer sentido ou se tornar muito mais claro); são colocados em pauta o que os pacientes enxergam dos médicos, o que deve ser um verdadeiro médico, como é sofrer como o paciente e como se relacionam os pacientes que compartilham doenças semelhantes. É um filme marcante a que todo médico já assistiu ou deveria assistir. Um clássico da videoteca médica, sem dúvida!



     

   Outra película que merece destaque é Uma Chance Para Viver (em inglês Living Proof), que é baseado num livro chamado Her-2, e dramatiza a história também real do médico norte-americano Dennis Joseph Slamon em sua busca incessante pela cura do câncer de mama. Na verdade, ele descobre um marcador presente em aproximadamente 30% das neoplasias malignas da mama e o filme retrata a sua luta para desenvolver um medicamento capaz de agir nas neoplasias que contenham tal marcador. Durante o filme, há brigas de laboratório e os custos são colocados friamente acima das vidas das mulheres que, desesperadamente, participam dos estudos em busca da redenção, com a esperança que jamais se deve abster de quem as tem de forma tão fiel e autêntica. É um filme bonito e sensível, mostrando a importância que pode ter um objetivo de vida de uma pessoa na vida de muitas outras, e as dificuldades reais que se apresentam na luta para realizar tal sonho. Deve ser visto, revisto e aplicado!




   O último filme que me inspira é O Homem Elefante, com Anthony Hopkins no papel de um médico que, no real papel de servidão e empatia, tenta integrar à sociedade um homem portador de Síndrome de Proteus (alguns acham que pode ser neurofibromatose), uma condição genética que se traduz no crescimento exagerado de porções do corpo, podendo ser estruturas cutâneas e subcutâneas, o que leva a um aspecto grotesco e aberrante por causa da doença (daí o título do filme). Com um clima noir, com ambientes circenses e o retrato de uma Inglaterra vitoriana, o filme trata de ideias preconcebidas de uma sociedade leiga mas que dita tais preconceitos de forma explícita e sem misericórdia; um médico esclarecido e sensível tenta ajudar o doente Joseph Merrick (que existiu e inspirou o filme) que foi descoberto por ele como atração de circo, onde era apresentado como um ser horripilante e que se alimentava somente de batatas, vivia enjaulado e era muito maltratado pelo proprietário do estabelecimento. O filme é trágico e mostra a tentativa de ajuda persistente do médico ao doente, que era apresentado como a 'versão mais degradante do ser humano'. Uma película forte em que o tema talvez verse muito mais sobre a dignidade humana do que qualquer coisa!




   Para encerrar esta humilde dedicatória à profissão que escolhi e da qual jamais irei sair porque se trata, acima de tudo, de gostar de servir sem esperar nada em troca, e por já ter percebido há algum tempo que, mesmo a mais poderosa das criaturas humanas, chora como criança e se vê frágil como um fino cristal límpido e claro, e neste momento particular, eu quero muito ser um pouco da luz e da esperança que, se não para sanar o sofrimento, aparece para estar ao lado, ouvir e confortar, e por entender, enfim, que todos sofrem, não importa quais tenham sido suas vitórias, suas conquistas, ou suas derrotas, suas quedas, gostaria de deixar uma mensagem de um médico norte-americano que trata do erro médico. Ele fala tão brilhantemente, de forma tão comovente, que merece ser destacado aqui (é minha forma humilde de enaltecer algo que inspira e faz crescer). O médico se chama Brian Goldman e é famoso no país por falar sobre o tema. Como o vídeo no YouTube não tem legenda em português, eu deixo o link para o vídeo (veja o texto sublinhado logo abaixo) com a possibilidade de se colocar legendas ao se passar o cursor do mouse pelo vídeo no site do TED - Ideas Worth Spreading (aliás, este site tem muitos vídeos inspiradores; deixo a dica). Uma boa semana a todos!

Médicos cometem enganos. Podemos falar sobre isso?


sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O Rapto de Proserpina

   A natureza muito nos ensina com a beleza e o misticismo que envolve as estações do ano. A ideia retratada no ciclo que se completa anualmente com as quatro estações é algo que conforta em muitos momentos de nossas vidas. Percebem-se momentos de tristeza, de brilho e luz, de introspecção, de sair para aproveitar o dia, de beleza que dura mas não é eterna, de vida agitada e de vida contida, etc.. Este ciclo nos ensina que é possível sempre recomeçar, por mais difícil ou fora da expectativa que possa parecer em várias situações, por maiores que sejam as adversidades, e que não pode ser diferente do que ocorre em vários momentos de nossas vidas, haja vista fazermos parte da natureza e sermos um todo constituído da mesma matéria que a compõe. Assim, não é difícil perceber como, desde muito tempo, mesmo quando os deuses eram muitos, e não um só, quando a ciência ainda vagava longe da mente humana, o homem tenta explicar essa magia da natureza de forma altamente criativa e respeitosa. 
  Sob a visão mitológica, conta-se que há, no vale do Ena, um lago escondido no bosque, este protegendo as águas do lago dos raios ardentes do sol; neste terreno, que é úmido, encontram-se flores as mais belas e que a Primavera reina ali perpetuamente. Proserpina, ou Prosérpina (na mitologia grega, Perséfone), que era filha de Júpiter (ou Zeus) e Ceres (ou Deméter; esta a deusa das plantas que brotam e do amor maternal), encontrava-se a brincar ao redor do lago com algumas companheiras, colhendo lírios e violetas, enchendo seu cesto e seu avental com estas flores, quando Plutão (ou Hades) a viu, apaixonou-se e a raptou. A indefesa Proserpina gritou, pedindo ajuda à mãe e às companheiras, mas quando, apavorada, largou os cantos do avental e deixou cair as flores, sentiu, infantilmente, sua perda como um acréscimo ao seu sofrimento. Plutão excitou os cavalos, chamando-os cada um por seu nome e soltando sobre suas cabeças e pescoços as rédeas cor-de-ferro. Quando chegou ao rio Cíano e este se opôs à sua passagem, o deus feriu a margem do rio com seu tridente, a terra se abriu e lhe deu passagem para o Tártaro.
   A partir daí, Ceres segue de forma persistente e desesperadora em busca de sua muito querida filha. Depois de muitas passagens que recheiam essa belíssima parte da mitologia, conta-se que, enfim, Ceres se apresentou diante de Júpiter e implorou a este que intercedesse de modo a conseguir a restituição de sua filha. Este, sensibilizado com o sofrimento daquela, consentiu, mas com uma condição: a de que Proserpina não tivesse tomado qualquer alimento durante sua permanência no mundo inferior; de outro modo, as Parcas proibiam sua libertação. Deste modo, Mercúrio (ou Hermes) foi mandado, acompanhado da Primavera, para pedir Proserpina a Plutão. O ardiloso deus do submundo consentiu, mas infelizmente a donzela havia aceitado algumas sementes de romã que ele lhe havia oferecido. Isto foi suficiente para impedir sua completa libertação, contudo firmando-se um acordo pelo qual Proserpina passaria metade do tempo com sua mãe e o resto com seu marido, Plutão
   Ceres ficou satisfeita com tal arranjo e, sempre que Proserpina sobe à terra, sua mãe restitui favores sobre esta; assim, durante metade do ano, Ceres brinda a terra com as estações da Primavera e do Verão, representando sua felicidade pela presença de sua filha; quando esta retorna ao submundo na outra metade do ano, Ceres fica triste, e surgem o Outono e o Inverno. No fundo, esta estória de Ceres e Proserpina é uma alegoria; a filha representa a semente do trigo, que, quando enterrada no chão, ali fica escondida, ou seja, é levada pelo deus do submundo; depois, reaparece, ou seja, quando ela é restituída à sua mãe, e a Primavera surge, com os grãos dando frutos e as flores desabrochando (é o período da colheita).
   Este episódio mitológico foi retomado e melhor acabado a partir do Livro V, de Metamorfoses, a obra-prima do poeta romano Publius Ovidius Naso (mais conhecido como Ovídio). Influenciou tanto a   cultura que viria que não se contam os poemas, as telas e as esculturas que surgiram sob forte e pura inspiração deste episódio. Vários artistas plásticos, incluindo Rembrandt, representaram este sequestro em suas telas; as representações são muito variadas, indo do paradisíaco e angelical ao sombrio e tenebroso. 

The Abduction of Proserpina, de Rembrandt (1631)

El Rapto de Proserpina, de Ulpiano Checa (1888)

Detalhe de Raub der Proserpina, de Luca Giordano (1684-1686)

The Rape of Proserpine, de Nicolò dell'Abbate (1570)

Raub der Proserpina, de Luca Giordano (1684-1686)

The Rape of Proserpine, de Carlo Francesco Nuvolone (séc XVII)

Il Ratto di Proserpina, de Nicolas Mignard (séc XVII)

The Rape of Proserpine, de Simone Pignoni (1650)

The Rape of Proserpine, de John Alexander (1721)

The Rape of Proserpine, de William Turner (1839)

The Rape of Proserpine, de Cristoph Schwartz (1573)

   Quando programando nossa viagem à Itália em 2010, em pesquisa pela internet, rapidamente me chamou a atenção a imagem abaixo:




   Quando vi pela primeira vez, fiquei sem saber do que se tratava ao certo: seria uma foto? Uma pintura? Uma escultura? Não sabia, naquele momento particular, que se tratava de uma das mais belas esculturas que já pude contemplar. Sim, tratava-se de uma escultura!!! As mãos perfeitas que tocavam o corpo do que parecia ser uma mulher, com sua carne macia e elástica, já apresentavam um detalhe de algo grandioso e, sem dúvida, eterno. Em sendo uma escultura, era quase impossível crer, sem ver ao vivo, que não era na verdade massa de modelar, mas mármore branco.
   Na cidade eterna, Roma, existe um lugar chamado Villa Borghese, que contém um jardim imenso, no estilo naturalístico inglês, e que abriga uma importante galeria da cidade: a Galleria Borghese. Nesta, estão presentes várias importantes esculturas de um dos maiores escultores de todos os tempos: Gian Lorenzo Bernini (1598-1680). Ele foi tão importante para Roma que é difícil imaginar a cidade, com todos os seus pontos turísticos, e mesmo os mais sutis, sem ver algo que ele criou ou projetou. A sua obra foi redescoberta quando do lançamento do livro Anjos e Demônios, de Dan Brown, e com o filme homônimo, estrelado por Tom Hanks. Se analisado de forma um pouco mais detalhada, vemos que o conteúdo que se destaca como pano de fundo do livro e do filme é quase que como uma ode a Bernini. Basta lembrar que importantes obras deste escultor, arquiteto, artista plástico, desenhista, cenógrafo, etc., distribuem-se pela cidade de Roma e pelo Vaticano: a Praça de São Pedro (com todas as suas colunas), o Castelo de Santo Ângelo, o Baldaquino da Basílica de São Pedro, o sepulcro do papa Urbano VIII, o altar do Santíssimo Sacramento, a Fonte dos Quatro Rios, a Fonte da Barca, a Fonte de Tritão, uma escultura importante de Davi, uma belíssima escultura de Apolo e Dafne, uma escultura magistral do Êxtase de Santa Teresa, vários bustos, entre inúmeras outras importantes obras.
   Depois de alguma pesquisa sobre Roma e sobre o escultor, o nosso passeio pela cidade foi como um descobrimento e contemplação de sua obra. Foi assim que, em uma das tardes na cidade, passeamos pela Villa Borghese e nos dirigimos à Galleria Borghese de forma ansiosa, mas com aquela ansiedade boa, como que antecipando um momento de êxtase profundo diante de algo belo e sublime. Foi assim que vimos O Rapto de Proserpina, de Bernini, e jamais vou me esquecer de quando fiquei diante da escultura pela primeira vez.


O Rapto de Proserpina, de Bernini (1621-1622)

O Rapto de Proserpina, de Bernini (1621-1622)

   Quando Bernini esculpiu esta obra, ele tinha apenas 23 anos. Ela foi patrocinada por Scipione Borghese, um cardeal que era um verdadeiro mecenas para Bernini e Caravaggio. Em 1622, o cardeal Scipione deu a obra para outro cardeal, Ludovisi, que a levou para sua vila, onde ficou até 1908, ano em que o estado italiano comprou a escultura e a trouxe para a Galleria Borghese, onde se encontra até hoje. 
   Bernini esculpiu os 2 metros e 95 centímetros de altura desta obra para que fosse vista pela frente, pois se observa a energia explosiva do rapto ocorrendo em sua plenitude, e a tentativa patética e inútil de Proserpina de se defender é apresentada. Visualizando a escultura desde a esquerda, percebe-se Plutão como um homem forte, poderoso, a agarrar uma jovem voluptuosa. 

   
O Rapto de Proserpina, de Bernini (visão pela esquerda e por trás)
   

   Ao se mudar o ponto de vista suavemente pela frente, percebe-se o olhar de Plutão meio confuso e ao mesmo tempo com um certo contentamento em ver Proserpina o negando e querendo se soltar de suas mãos. Ainda pela frente, a posição de Proserpina se apresenta de forma tal que é como se Plutão estivesse levantando um troféu, o SEU troféu, como se mostrando para os que estão vendo e dizendo 'Vejam, o meu troféu', e que levará para o submundo. Indo para a direita, percebe-se Proserpina tentando desesperadamente se libertar, ainda que inutilmente; empurrando o rosto de Plutão com uma das mãos e com a cabeça pendendo para o lado oposto, sente-se o seu desespero. Seus lábios estão um pouco abertos, e quase se escuta ela gritando em seu sofrimento, clamando por ajuda. E vendo mais perto, no detalhe de seu rosto, as lágrimas são de uma realidade tamanha que parece uma atriz que chora posando para uma tela. Realmente impressionante! 

   
O Rapto de Proserpina, de Bernini (visão pela frente, detalhe)
   

O Rapto de Proserpina, de Bernini (visão pela direita)

O Rapto de Proserpina, de Bernini (detalhe do rosto de Proserpina)


O Rapto de Proserpina, de Bernini (detalhe do rosto de Proserpina)

   Bernini, sem dúvida alguma, caprichou nos detalhes desta obra, sendo as mãos que apertam o abdome e a coxa da jovem, além da pele e da carne desta, de uma realidade e perfeição que tocam profundamente aqueles que vêem a obra e a contemplam calmamente, e não se consegue sair de perto da escultura enquanto todos os detalhes sejam vasculhados e compreendidos, e de novo se tenta contemplar o todo uma última vez. Dando suporte ao grupo, vê-se Cérbero, o cão de três cabeças representado por Dante Alighieri em sua obra, e que olha em três direções diferentes, sempre a guardar as portas do inferno.


O Rapto de Proserpina, de Bernini (detalhe de Cérbero)


O Rapto de Proserpina, de Bernini (detalhe de Cérbero)
   
      Dizem quem Bernini tirou inspiração para esta escultura de um outro escultor italiano, Pietro da Barga. Este havia esculpido o seu Rapto de Proserpina no século anterior (XVI), e este se encontra atualmente em Florença.


O Rapto de Proserpina, de Pietro da Barga (1580)

   Um último detalhe sobre a escultura de Bernini é que a interpretação da obra talvez se explique por dois versos que o escultor colocou na base da obra e que pertencem ao papa Urbano VIII. Por um lado, a escultura representaria a brevidade da vida e o perigo da morte; por outro, representaria o fim do verão e um inverno que estaria por chegar mais adiante. 
   É, sem dúvida, uma belíssima obra de um gênio que deixou sua marca no mundo; é eterno! A exaltação é maior quando lembro de que Bernini tinha somente 23 anos quando esculpiu esta obra-prima. Incrível! O fato é que jamais esquecerei do dia em que estive diante desta obra inspiradora e, sem dúvida, obra de arte! Ou, como se diz em inglês de forma consistente e solene: a truly masterpiece!

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O Palhaço

   Era 11 de junho de 2010, uma sexta-feira. Na Europa, no meio do ano, e com o horário de verão, os dias clareavam muito cedo, e somente por volta das 21 ou 22 horas é que estava escuro. Com um tempo bom, podendo usar roupas leves, passamos o dia a conhecer monumentos, esculturas, museus, quadros, igrejas, praças e muito mais em Florença, uma das cidades mais belas que já pude visitar até agora. Parece que não sou o único a considerar esta uma das cidades mais belas, haja vista que existe até uma condição, conhecida por 'Síndrome de Florença', ou 'Síndrome de Stendhal' (ps: Stendhal era o pseudônimo de Henri-Marie Beyle, autor francês que escreveu O Vermelho e o Negro), em que, quando diante de uma beleza estonteante, suprema, podendo ser um lugar fechado com várias obras de arte, o que é mais frequente, ou uma beleza natural, o indivíduo pode apresentar níveis variáveis de angústia, confusão mental, despersonalização ou desrealização, ilusões ou alucinações e sintomas relacionados a pânico (taquicardia, tontura, falta de ar, sensação de medo de morrer, etc.). Esta condição recebe o nome de 'Síndrome de Stendhal' porque este apresentou tais sintomas ao visitar a cidade de Florença em 1817, principalmente quando de sua visita pela Basílica de Santa Croce, que é a principal igreja franciscana na cidade; nesta, estão enterrados Michelangelo, Maquiavel, Galileu e Rossini, entre outros. Isto que o autor sentiu está descrito em um de seus livros, chamado 'Nápoles e Florença: Uma viagem de Milão a Reggio', que é uma espécie de diário da jornada. Em 1989, uma psiquiatra italiana, chamada Graziella Mangherini, tendo observado tais sintomas em várias pessoas, principalmente que tinham visitado Florença pela primeira vez, e tendo catalogado 106 casos, descreveu e nomeou a síndrome. Em uma das classificações de transtornos mentais, o DSM-IV-TR (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), que foi publicada pela Associação Americana de Psiquiatria em 1994 e revisada em 2000, descreve que a referida síndrome pode ser alocada entre os 'transtornos ligados a cultura' (Culture-Bound Syndromes).

Vista da Piazzale Michelangelo, em Florença

Carol em Florença

Paisagem de Florença, vista da Piazzale Michelangelo

   No final da tarde daquele dia, percorremos um caminho longo mas que permitiu umas das vistas mais impressionantes que eu já pude presenciar; ver o sol se por sobre a Ponte Vecchio e o rio Arno, tudo lá do alto da Piazzale Michelangelo, é algo que eu tentaria descrever aqui mas sem jamais me aproximar do que vi de fato. É simplesmente fantástico! Confesso que não cheguei a apresentar sintomas que preenchessem os critérios da síndrome, mas a imagem daquele momento está muito viva na memória, e essa lembrança será eterna. Acontece que o que guardo com mais carinho daquele dia é o que pudemos presenciar voltando para o lugar onde estávamos hospedados; ao redor da Piazza della Signoria, já durante a noite (portanto deveria ser por volta das 21h e alguns minutos), paramos numa sorveteria para degustar os famosos e saborosos sorvetes italianos. Logo após recebermos os sorvetes, dirigimo-nos por uma rua que sai da praça, uma das principais no local, e começamos a ouvir o som de vozes que se amontoavam; risos vinham de uma das ruas que cruzavam essa principal. Ao cruzar por esta, havia uma roda de pessoas, um grande círculo que envolvia toda a rua, e, no meio, um palhaço que brincava com um dos integrantes da 'plateia'. Com a arquitetura antiga do local, as pessoas com roupas leves pelo clima ameno da época, não muito frio nem muito quente, com toda aquela estrutura de obras do passado, sem evidências muito exuberantes de qualquer tipo de tecnologia dos nossos tempos, ficamos a observar o palhaço, um homem de meia idade, brincando com as pessoas ao redor, com seu traje característico e não muito sofisticado, com toda aquela maquiagem e roupas coloridas, e me senti como se estivesse em um distante tempo no passado. O palhaço cativava a todos, e simplesmente não conseguíamos ir embora. Depois de alguns minutos, acabou os nossos sorvetes, observamos mais um pouco e fomos embora. Pela situação inusitada que trouxe uma alegria não esperada e por remeter a tempos muito distantes (bem como tudo o que há pela cidade), aquela foi a melhor recordação que guardo daquele dia.




   O termo 'palhaço' provavelmente vem do italiano omino di paglia (a palavra atual em italiano é pagliaccio), ou seja, 'homem de palha', referindo-se ao homem humilde que vinha do campo para a cidade grande e, em não encontrando emprego imediatamente, vivia pelas ruas bebendo até se embriagar (a espuma branca na boca seria representada pela parte branca da maquiagem ao redor da boca), caindo várias vezes (batendo o nariz, este ficava vermelho, representado pelo adereço vermelho no nariz), ganhando roupas dos outros, já que não tinham dinheiro para comprar, e estas eram ou muito curtas ou muito longas, com sapatos muito grandes, enfim, com peças desproporcionais entre si. Este termo de origem italiana refere-se mais ao indivíduo que se via em feiras e praças. Já o termo clown origina-se no século XVI e pode ter, inclusive, origem celta, relacionando-se mais ao indivíduo engraçado que anima plateias em circos. Apesar da origem diferente dos termos, o palhaço é o personagem que existiu, inicialmente, para entreter as pessoas, fazê-las rir, entre os principais números de um espetáculo; atualmente, é um personagem icônico e fundamental em qualquer circo, representando mesmo números específicos do espetáculo.
   Sempre que se pensa em palhaços, a referência é de alegria, animação, entretenimento, diversão, sorriso, etc.; mas é particularmente instigante que algumas vezes tem-se a ideia do palhaço como alguém que faz os outros rirem e escondem uma grande tristeza. Essa relação entre o indivíduo que anima a vida de outras pessoas mas que guarda um grande conflito em sua própria vida tem certo fundamento haja vista a origem do termo baseada na miséria e pobreza de algumas pessoas, como as que vinham do campo para a cidade grande tentar a vida.
   Algumas músicas de conotação mais séria foram compostas ao longo dos tempos; uma, em particular,  Send in the clowns, tem como tema justamente esta ideia do palhaço como aquele que entra em cena para entreter, animar nos intervalos de outros espetáculos, ou, como é o caso mais provavelmente, aquele que entra, simplesmente, para 'mudar o foco' de um lugar para outro. Em outras referências, o palhaço é aquele que entra em cena quando algo dá errado num espetáculo, na ideia, portanto, de algo para ludibriar e entreter a plateia no sentido de desviar o foco do que acabou de dar errado (é como alguém dizendo, quando há um erro não esperado em um determinado número do espetáculo, '- Depressa, que entrem os palhaços! Rápido... Rápido...'). É esta última a verdadeira significação desta fascinante música de Stephen Sondheim, de 1973; este a compôs para um musical chamado A Little Night Music (Uma pequena música noturna), que foi uma adaptação do filme Smiles of a Summer Night (no Brasil, Sorrisos de Uma Noite de Amor), de Ingmar Bergman. Não conheço este filme, mas a referência imediata do título do musical para mim é a belíssima peça homônima de Mozart (Eine Kleine Nachtmusik), que é tocante e muito conhecida. Bom, a música foi composta para a personagem Desirée, sendo uma balada para o segundo Ato do musical; no momento em que a música é executada, esta personagem reflete sobre as ironias e os desapontamentos em sua vida, sendo que uma das lembranças é um romance do passado com o advogado Fredrik, que se encontra com uma noiva mais jovem e se recusa a deixar esta para ficar com Desirée, que deseja se casar com ele para sair de suas lamentações. Como isto não ocorre, a personagem principal canta a referida canção. Segundo o compositor, Sondheim, na verdade a música trata dos tolos que somos todos nós, mas com a ideia já comentada de que, 'quando algo não ocorre conforme o desejo, ou conforme o previsto, que entrem os palhaços', ou seja, 'façamos as brincadeiras'... A referência aos palhaços foi escolhida por se tratar de um musical, e a personagem, sendo uma atriz, é remetida a um ambiente teatralizado, como é o circo. Por fim, esta belíssima canção merece tal lembrança e pequenos comentários porque insere a palavra 'palhaço' num contexto de alegria e nostalgia, ou tristeza, ao mesmo tempo, e isto tem muita semelhança com o personagem de Selton Mello no expressivo filme que irá representar o Brasil no Oscar do próximo ano. Deixo dois vídeos de duas versões da canção, sendo uma do grande Renato Russo (com legendas e belas imagens) e outra de Judy Collins (neste vídeo, percebe-se o paralelo dos paradoxos entre a melancolia da canção com a alegria dos palhaços que brincam durante a execução). São versões para recordação e reflexão... Muito envolventes!





 
   Antes de assistir definitivamente ao filme do Selton Mello, confesso que parei na primeira tentativa com poucos minutos de execução. Sempre tive um certo receio de que filmes que tenham por volta de 90 minutos de duração possam ter um enredo envolvente e bem desenvolvido (exceto para o caso de filmes de animação, os chamados 'filmes infantis'), e o filme O Palhaço tem por volta de 90 minutos de duração. Várias vezes gosto de não ter me afeiçoado a um filme, ou um livro, ou uma música quando entro em contato com eles pela primeira vez, porque acabo pesquisando mais sobre os mesmos e me interessando, me envolvendo com o conteúdo que vou acumulando, e aí estes passam a fazer muito sentido. Este foi o caso do filme quando, lendo a respeito, vi algumas resenhas em que se tratava de 'alguém querendo se encontrar', e isto é uma metáfora para a vida de todos nós, sem exceção. O filme conta a estória de um palhaço que nasceu e viveu boa parte de sua vida num circo mambembe dos anos 70 e sente muito por não se encontrar com aquilo que faz da vida; por um lado, é como um dos comentários que fiz sobre os palhaços anteriormente em que eles existem para fazer os outros rirem mas que podem guardar, no fundo, um grande conflito (e assim é com muitas outras profissões ou 'vocações' mutáveis que se percebem em muitas vidas por este mundo). Isto é muito atraente para se desenvolver uma discussão sobre a vida, porque é o paradoxo da alegria e da tristeza, que na verdade são apenas dois extremos da mesma coisa, e precisamos compreender bem uma delas para valorizar muito a outra; é assim com as emoções em geral.


 

   O filme é desenvolvido em cenas curtas, e, em boa parte do mesmo, o palhaço Pangaré (personagem do Selton) fala poucas coisas, e de forma fria, seca, expressando o que se passa no fundo de sua alma; assim, vai procurando uma identidade, apresentando-se, sempre, apenas com uma Certidão de Nascimento mal guardada, amassada, ilegível, como fora sua vida até então. O bom do filme, que é de certa forma nostálgico na belíssima fotografia (com tons alaranjados, um sépia sutil) e na trilha sonora, é que os personagens têm todos seus conflitos, se ajudam em despesas mútuas (como uma família faz), ora se regozijam com a vida que levam, ora lamentam não poderem ter tido outras oportunidades, e vão passando por várias cidades, como se a experiência pela vida, jogar-se pelo mundo, os ajudasse a se encontrarem; e é justamente isto que faz o Pangaré, que lamenta fazer os outros rirem mas não ter ninguém para fazê-lo rir em boa parte do filme. Ao longo dos caminhos percorridos, das pessoas que são encontradas, com o filme em enquadramentos geométricos e se apresentando na grande maiorias das vezes como se houvesse um palco (aquele que se apresenta) e uma plateia (aquela que assiste), com este enquadramento e o movimento da câmera deixando isto muito claro, o personagem principal vai aprendendo por poucas palavras, mas realmente entende quando se afasta do que mais o estava atormentando e se joga em um outro mundo (só como detalhe, a cidade que Benjamin Savalla Gomes, que aliás é uma sutil homenagem ao palhaço Carequinha, que se chamava George Savalla Gomes, não mais o palhaço Pangaré, procura para morar e tentar se encontrar é Passos, em Minas Gerais, que é a cidade-natal de Selton Mello, apesar de este ter dito em entrevistas que não se trata de um filme autobiográfico).



 


 

   O filme tem cenas muito elaboradas de humor verbal, com muitos personagens caricaturais. Moacyr Franco no papel do delegado leva o filme a um êxtase de humor sem igual (assista abaixo), e preste atenção que é como se o enquadramento nele remetesse a um palco e o enquadramento nos detidos remetesse a uma plateia (o filme tem muitas cenas assim, como já comentado). O Zé Bonitinho é o personagem que, longe no filme, faz Benjamin realmente rir, e ele se descobre feliz, de repente, onde antes estava tentando se encontrar. Detalhe ainda para o personagem louco de Tonico Pereira e para o personagem nostálgico de Jackson Antunes, que aliás apresenta um ensinamento como que levantado do chão (ele vive num lugar altamente apocalíptico, degradado pelo tempo, como foi sua vida de ressentimentos e melancolia, mas diz uma frase que é simples e capaz de mudar o rumo de Benjamin mais adiante no filme, qual seja: 'O gato bebe leite; o rato come queijo. E eu? Eu toco meu trabalho', dizendo, assim, que cada um deve fazer o que sabe fazer).


 
 
   Sendo um filme que materializa em 90 minutos uma profunda busca pelo sentido da vida, pela busca de uma identidade, é magistral no conjunto e tocante principalmente em seu final, quando vemos que, diante de toda a miséria de bens no meio em que vivem, a riqueza das pessoas e da convicção de estarem fazendo aquilo de que gostam e trabalhando naquilo em que acreditam é uma alegoria sem igual da beleza da vida. E no último suspiro da vida, fecha-se um ciclo, com a garotinha vivida por Larissa Manoela tendo se identificado com o que Benjamin encontra em sua busca pelo referido sentido; inicia-se, assim, uma vida que será parecida com a do palhaço, e com uma alegria contagiante, que por meio de crianças, se traduz num sorriso (e numa expressão que remete a um sonho vívido, somente por elas compreendido), que é a essência daquilo que faz um palhaço para colorir um pouco nossas vidas.
   Para que não haja a ideia somente do palhaço trágico, até porque o filme tem um fim que se assemelha mais a uma felicidade sutil do que a uma nostalgia profunda, deixo uma música do maior letrista do Brasil, Chico Buarque, que expressa o valor que se deve dar a todos esses seres que inspiram criatividade e buscam preencher algumas lacunas de tristeza em nossas vidas, ainda que vistos como uma esfera inferior da sociedade; Mambembe é primorosa! Boa semana a todos.