sábado, 26 de janeiro de 2013

The Dark Side of the Moon - Parte 2

   Na semana passada, escrevi um pouco sobre um dos discos mais importantes do Pink Floyd e da história do rock, The Dark Side of the Moon (DSotM). Nesta semana, conforme tinha exposto anteriormente, tentarei escrever um pouco sobre cada uma das músicas deste álbum fantástico, absorvente e enigmático. É simplesmente um deleite aos ouvidos e à imaginação se deixar levar por cada uma de suas, não individuais, músicas. Muitas e muitas viagens; pode-se ir do mais profundo do oceano ao mais alto do céu e, ainda assim, perceber que, no fundo, o tema é a vida de cada um de nós. Perfeito! 
   Na primeira música, Speak To Me, ouve-se, inicialmente, uma espécie de batimento cardíaco. Nas versões pré-lançamento do álbum, nas performances ao vivo, essa música era geralmente apresentada somente por uma batida baixa de uma percussão ou bateria, representando o batimento cardíaco. No álbum, além do som do coração, seguem-se sons que representam as diversas coisas que podem nos levar à loucura no dia a dia: trechos falados, o tic-tac de um relógio, uma caixa registradora, moedas tilintando, um sintetizador, e, no final, um grito louco. Este grito foi representado por Clare Torry, a mesma que viria mais tarde na faixa The Great Gig in the Sky. Na verdade, Speak To Me contém sons característicos de outras das músicas do álbum, como uma espécie de síntese do disco; começa com o batimento cardíaco que fecha a última música do disco, Eclipse, seguido pelo tic-tac do relógio que se ouve em Time, depois vêm os sons de moedas tilintando e de caixas registradoras que se ouvem em Money e os risos lunáticos de Brain Damage. Ainda, ouvem-se sons de porto como apresentados em On The Run e, por fim, como já descrito, os gritos de Clare Torry, que acabam levando a canção a Breathe, a faixa seguinte. No meio disto, ouvem-se trechos de entrevistas realizadas no próprio estúdio Abbey Road por Waters; os dois trechos selecionados remetem à loucura ('I've been mad for f*#& years, absolutely years, I've been over the edge for yonks. Been working with bands so long, I think. Crikey...' e 'I've always been mad, I know I've been mad, like the most of us are. It's very hard to explain why you're mad, even if you're not mad.'). Esta é a única música do Pink Floyd que dá todos os créditos ao baterista Nick Mason, que chamou a composição de uma 'montagem de cor e som'. Os risos lunáticos são contribuição de Peter Watts, o pai da atriz Naomi Watts, e que era um dos 'empresários de estrada' do grupo; Peter morreu vítima de overdose de heroína em 1976, aos 30 anos. Bem interessante é interpretar esta música como se você fosse alguém que está ainda no útero da mãe; lá, você não tem nenhuma ideia do que está por vir, e ouve sons do mundo exterior que dão uma espécie de prévia do que está acontecendo lá fora; no entanto, você, no útero, ainda não tem ideia do que esses sons significam. E é mesmo interessante esta forma de análise da música, já que, os gritos de Clare Torry, no final da música, podem representar o grito de um bebê que acaba de sair do útero num parto, e chega-se à próxima canção, Breathe (e a criança respira pela primeira vez). Ora, este é um álbum conceitual, e aparentemente cobrem-se, em todas as suas faixas, eventos que ocorrem durante a vida e entre esta e a morte, e a relação destes com o cosmos; começando com o nascimento, em Speak To Me, percebe-se que a última música, Eclipse, poderia representar o fim da vida, a morte ('but the sun is eclipsed by the moon', um dos trechos desta última música, talvez queira representar que a luz da vida acabe se apagando com a morte, como a lua eclipsando o sol e ofuscando-o com a escuridão). 
   Na segunda faixa, Breathe (In The Air), que acaba sendo uma só juntamente com Speak To Me, percebe-se que se trata de um homem mais velho, que já vive por este mundo há algum tempo, falando com alguém que acaba de chegar ao mundo, um bebê, e diz-lhe, inicialmente, para respirar ('Breathe breathe in the air'). O homem mais velho vai então descrevendo a provável vida infeliz de trabalho que o bebê terá que enfrentar ao longo de sua vida ('Run rabbit run / Dig that hole forget the sun'). Falando neste contexto, percebe-se que a canção implica em que precisamos superar estas mensagens e fazer aquilo que nos inspira, e esta é uma forma muito consistente de encarar o significado destas duas primeiras canções, e todo este sentido as lança nas alturas como belíssimas músicas. No filme de que falei na primeira postagem, The Dark Side of the Rainbow, o verso 'and balanced on the biggest wave' (equilibrado sobre a maior onda) é recitado quando Dorothy quase perde o equilíbrio ao caminhar ao longo da cerca. Ainda, os susurros que podem ser ouvidos ao longo de todo o álbum são referências à loucura de Syd Barrett, integrante fundador do grupo que acabou saindo deste alguns anos antes de DSotM.
   A próxima faixa, On The Run, na verdade é instrumental e tenta retratar a pressão das viagens, estas que frequentemente traziam medo irracional ao tecladista, Richard Wright. O instrumento principal é um sintetizador, e muitas pessoas consideram esta música como uma das peças mais precoces do estilo Techno. O teclado que pode ser ouvido executa somente 5 notas que são repetidas rapidamente. Em aproximadamente 25 segundos durante a música, ouve-se o som de uma voz em um alto-falante, e alguns pensam tratar-se de uma 'voz de aeroporto' dando informações aos viajantes. Nas apresentações ao vivo, um modelo de avião voa de um extremo ao outro da arena e acaba numa explosão intensa e brilhante. Interessante notar nesta canção que pode ser interpretada como um complemento perfeito ao último verso da canção anterior, Breathe (In The Air), em que se ouve: 'Your race towards an early grave' (sua corrida para o túmulo mais cedo). É uma música que lida, sem dúvida, com as pressões e a correria da vida moderna, e representa como nós corremos ao longo da agitação do dia a dia de nossas vidas. Abaixo, deixo um vídeo da versão de estúdio destas três primeiras canções como uma só. A seguir, a versão do Live Aid em 2005 das duas primeiras canções. Fantástico! E, por fim, On The Run apresentada no Pulse.








   A quarta música do disco, Time, é, indiscutivelmente, a de maior brilho do ponto de vista do rock enquanto estilo musical, e, sem dúvida, a minha preferida do álbum. É completa no que tange ao acabamento da letra, dos sons de guitarra, da mensagem, da melodia, do jogo de vozes entre Gilmour e Wright, entre várias outras qualidades. Perfeita! Esta é uma daquelas músicas que são quase como uma espécie de manual para a vida, como se pudesse se viver mais e melhor se fossem seguidos os ensinamentos em seus versos. E, ainda, consegue ter, nos seus últimos versos, na reprise de Breathe (In The Air), mas com outra letra, um final místico e enigmático. Definitivamente, um clássico do rock e está entre minhas músicas preferidas em todos os tempos. Esta música é sobre como o tempo pode passar, escorregando entre nossos dedos, mas muitas pessoas não percebem isto até que seja tarde demais. Roger Waters teve a ideia desta música quando percebeu que não estava mais se preparando para qualquer coisa em sua vida, apesar de estar bem no meio dela (ele tinha acabado de completar 28 anos). No conceito geral do álbum, em que se tinha a ideia de explorar as pressões da vida em todas as suas músicas, Time tem como tema a mortalidade. Os sons do relógio no início da música foi descrito e explicado na primeira postagem sobre este disco neste blog. O outro som que se ouve no início da música, representando o passar do tempo, é dado pelo baixo de Waters. Para quem se inicia em Pink Floyd, esta é aquela música que rapidamente faz qualquer um se converter em fã devoto, e, ainda mais, ter como ídolo definitivo na guitarra o grande David Gilmour; este consegue transmitir tanta emoção e mistura de sentimentos em seus solos sem ser um mero executor de notas sequenciais rápidas e sem sentido. Um mago definitivo da guitarra! Um momento único em Time é durante o solo de guitarra quando os backing vocals surgem; quase se pode sentir o vento balançar seus cabelos, o som do mar surgir em seus ouvidos e a luz do sol bater em seu rosto! Magnífico! (Experimente! :)) Toda a letra é sensacional e profunda, e muito concatenada à melodia, como se ambos se encaixassem perfeitamente; os versos que mais me causam comoção estão no refrão antes do solo: Tired of lying in the sunshine staying home to watch the rain / You are young and life is long and there is time to kill today / And then one day you find ten years have got behind you / No one told when to run you missed the starting gun. Demais! E, ainda, o último verso antes da reprise de Breathe (In The Air) emite exatamente o anseio daquele que canta a letra para nós, como se ele estivesse dizendo que tudo foi dito, tentando mostrar como você não pode deixar o tempo passar e não viver, e expressa uma espécie de tristeza porque ele gostaria muito de ter mais a dizer para nos convencer, mas parece não encontrar mais palavras para isto (the time is gone, the song is over, thought I'd something more to say). E, logo a seguir, vem a reprise de Breathe em plena calmaria; nesta parte, o que se percebe é que, se você se entregar às armadilhas da correria do dia a dia e deixar o tempo passar, sem viver, você acabará na mais completa solidão... Grandioso! Esta música é mais que perfeita! No final da reprise, aparecem versos enigmáticos: 'Far away across the field / The tolling of the iron bell / Calls the faithful to their knees / To hear the softly spoken magic spell'. Estes parecem remeter a tempos mais antigos, de uma Europa pré-Reforma, e parece querer dizer que a solidão parece se rechear de não viver, que muitos dos que se entregam totalmente e cegamente à fé em algo superior podem cair na armadilha de serem enganados por aqueles que a usam para dizer o que é certo, o que é errado, o que se deve ou não fazer, e nisto você acaba não vivendo o que é consistente com o seu 'eu' interior; enfim, parecem querer dizer que você deve viver o que é sincero e profundo em você, e não o que dizem os que usam sua fé em algo para manipular o seu viver. Acho, no fundo, que eles estão a querer dizer na música que você deve viver sua vida, com suas crenças e fés sim, mas que talvez não precise de mediadores para isto, pois a manipulação de muitos destes pode fazer você não perceber o tempo passando, e aí, talvez, a vida que você viveu foi a de outros, e não a sua. Deixo, abaixo, a versão do álbum e a versão do Pulse!






Time, uma das melhores música do rock mundial em todos os tempos!

   Na quinta música do disco, The Great Gig In The Sky, Wright apresenta algo sobre a vida, gradualmente indo até a morte. Assim, a primeira, mais intensa e agressiva metade demonstra uma pessoa morrendo se recusando a ir 'gentilmente em direção àquela boa noite'. A segunda metade é mais gentil, já que a pessoa que está morrendo percebe o inevitável e desaparece... Wright uma vez explicou que uma das pressões de estar na banda era o medo constante que ele tinha de morrer porque estavam sempre viajando em aviões e estradas pela América e pela Europa. Interessante que, quando trabalhando no álbum DSotM, muitas das músicas ainda não tinham títulos, e eles referiam-se a esta canção como 'The Religious Section', ou 'The Mortality Sequence'. Esta música tem créditos de autoria também para Clare Torry, que, como descrito na primeira postagem sobre o álbum neste blog, criou a parte vocal para a música. Esta canção encerra o lado A do disco (comum na época do vinil), que mais tarde apresentará a referência à morte. Existem ainda duas partes faladas que são trechos que fazem referência à morte, também retirados das entrevistas de Waters: 'And I am not frightened of dying. Any time will do, I don't mind. Why should I be frightened of dying? There's no reason for it - you've got to go sometime', aos 38 segundos, e 'I never said I was frightened of dying', aos 3 minutos e 33 segundos. Enfim, uma belíssima e lírica canção! Deixo abaixo a versão de estúdio e uma versão ao vivo espetacular!






   A sexta faixa do disco, ou primeira do lado B, Money, lida com o mal que o dinheiro pode trazer. Ironicamente, trouxe ao Pink Floyd muito dinheiro, já que o álbum vendeu mais de 34 milhões de cópias, e esta música é uma das mais copiadas e motivo de covers pelo mundo todo das compostas pelo grupo. É frequentemente mal interpretada como sendo um tributo ao dinheiro; alguns acham que, por exemplo, no verso 'Money, it's a gas', o dinheiro é considerado uma coisa boa, quando na verdade é justamente o oposto (lida-se, na letra, com o sarcasmo, com o dizer uma coisa querendo significar outra). A música ganhou grande notoriedade por causa da mudança de tempo durante sua execução: começa com um compasso pouco usual, 7/8, no solo passa a 4/4, depois volta ao 7/8 para terminar no 4/4. A letra e composição são creditadas a Roger Waters, mas o solo de guitarra de David Gilmour dá um brilho espetacular à música, e a torna um dos grandes sucessos da banda. É um das duas músicas do álbum em que se escuta uma parte com saxofone, executada por Dick Parry. O início da música, com todos os sons que remetem ao dinheiro, foram descritos e explicados na primeira postagem sobre este disco aqui mesmo neste blog. Deixo, abaixo, a versão de estúdio e uma versão ao vivo!







Capa do relançamento do single de Money

Dick Parry

   A sétima canção do álbum, Us and Them, creditada a Waters e Wright, é a maior do disco. Inicialmente, era somente uma peça de piano criada por Wright para um filme de 1969, chamado de Zabriskie Point; o diretor italiano Michelangelo Antonioni a rejeitou inicialmente, afirmando que era muito bonita, mas muito triste, e que o lembrava uma igreja. Ficou conhecida inicialmente por 'The Violent Sequence' porque seria executada numa parte violenta do filme. Ganhou maior crédito quando Waters resolveu colocar uma letra nela e gravar em DSotM. A letra parece retratar a aparente divisão que há na sociedade em geral, enquanto no fundo somos iguais. Outras formas de interpretação remete às grandes guerras da Europa no século XX, principalmente a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria, e também já foi dito que é um relato da loucura na mente de Syd Barrett, com a divisão de sua personalidade e sua doença mental cada vez mais evidente (interessante que esquizofrenia significa, literalmente, mente dividida, ou mente partida). As influências de Wright na melodia do piano vêm do Jazz. É a segunda música do disco a conter partes executadas pelo saxofone de Dick Parry, e antes do segundo solo deste instrumento podem-se perceber trechos das gravações de Waters ('Well I mean, they're gonna kill ya, so like, if you give 'em a quick sh...short, sharp shock, they don't do it again. Dig it? I mean he got off light, 'cause I coulda given 'im a thrashin' but I only hit him once. It's only the difference between right and wrong in it? I mean good manners don't cost nothing. Do they, eh?'). Considero, esta, minha segunda canção preferida do álbum. Com uma cadência lenta, apresenta trechos que são verdadeiros ápices na execução e é uma das primeiras músicas do grupo a apresentar um backing vocal feminino. Grande música! Deixo a versão de estúdio abaixo.




   A oitava música do disco, Any Colour You Like, é instrumental. Tem seu título geralmente atribuído a algo que Henry Ford uma vez disse sobre o automóvel modelo T: 'You can have it any colour you like... as long as it's black!'. Também se atribui a um empresário prévio do grupo, Chris Adamson, que quando questionado sobre uma guitarra, respondeu: 'Any colour you like, they're all blue'. A música usa avanços em efeitos de guitarra e de teclado. De acordo com estas ideias dos trechos que inspiraram o título, metaforicamente Any Colour You Like significa oferecer uma escolha quando na verdade ela não existe. E se for pensado a respeito de escolhas, fica interessante quando se relaciona a paradoxos, como o claro e o escuro, o sol e a lua, o bem e o mal; quer dizer, na verdade, metaforicamente, significa que não há escolha; elas simplesmente existem de uma forma ou de outra. É, sem dúvida, uma música transcendental. Deixo a versão de estúdio.




   Na penúltima música do álbum, Brain Damage, há referência total à loucura, à insanidade, à Syd Barrett. Muitos consideram esta e Eclipse, a última música do álbum, na verdade como uma música só pela continuidade de uma à outra. O verso 'You raise the blade, you make the change' é uma referência à lobotomia frontal, uma das poucas intervenções cirúrgicas em Psiquiatria. Já em 'And if the band you're in starts playing differente tunes' é uma referência específica à propensão de Syd para tocar as músicas erroneamente nos palcos durante suas 'viagens' nos seus dias finais com a banda. Na sincronização com O Mágico de Oz, esta música é tocada quando o espantalho canta 'If I only had a brain'. Há ainda outros versos que remetem à loucura, como em 'the lunatic is on the grass', em que a grama não é referência à maconha ou algo do tipo, mas à grama mesmo; Waters baseou este verso nos avisos de 'Stay Off The Grass' e como ele pensava que quem desobedecesse ao aviso seria considerado louco. Enfim, é uma música que é explicitamente sobre a loucura e a lucidez. Uma das grandes do disco! Deixo a versão de estúdio.




   E, por fim, a última e enigmática música do disco: Eclipse. Esta é uma música perfeita para o desfecho deste álbum conceitual; observam-se versos que retomam uma das primeiras músicas do álbum, Breathe ('All that you touch, all that you see') e a letra, na verdade, vai falando de coisas que acontecem em nossas vidas, e completa-se a metáfora da vida de cada um de nós representada em todo o álbum. É como se fosse fechado o ciclo de uma pessoa que se encontra no final da vida, aquela espécie de 'luz' que mostra em alguns segundos tudo de importante que se passou em sua vida pouco antes de você morrer. Uma outra forma de ver o desfecho nas letras é que vai-se falando de tudo que você vive ao longo da vida e, no final, a lua encobre o sol num eclipse, e a lua é muitas vezes menor que o sol, mas consegue fazê-lo; daqui da Terra, por outro lado, enxergam-se ambos com tamanhos semelhantes. Assim, nem tudo o que se vê, ou se percebe, ou se vive, é exatamente como se vê, percebe ou vive. Nem tudo é o que parece ser! E quando a lua encobre o sol num eclipse, o seu 'lado escuro' está, agora, claro, e o lado da lua que vemos daqui da Terra está, na verdade escuro; é o novo 'Dark Side of the Moon'; por esta interpretação, no fim, somos todos loucos! Interessante! E, no final de todo o álbum, com o coração a bater, ouvem-se os trechos finais: 'There is no dark side of the moon really. Matter of fact, it's all dark.' Genial! Melhor forma de concluir um álbum conceitual, impossível! Deixo a versão de estúdio e uma versão ao vivo, sendo esta a união de Brain Damage e Eclipse.







   Assim, procurei discutir cada uma das músicas deste que é um dos maiores e mais importantes discos da história do rock. É muito difícil alguém dedicar um pouco de atenção a ele e não se deleitar, não se emocionar ao ouvir, por exemplo, Time, ou Us and Them. Um disco extremamente completo e com músicas melodicamente tocantes e letras profundas, inspiradoras e engrandecedoras. Espero, sinceramente, que você o descubra e que ele faça parte de sua vida, suas convicções, lhe traga boas recordações de paisagens na natureza, imagens em sua memória, como traz para mim. A truly masterpiece! Uma boa semana a todos!


sábado, 19 de janeiro de 2013

The Dark Side of the Moon - Parte 1

   Impressionante como a música tem um poder de trazer imagens que somente estão na sua memória; lembranças de outros tempos e de momentos que ganham um brilho muito especial porque ela os requintou, a eles deu sentido, e aquele arrepio que dá na alma ao ouvir a música que nos traz uma boa lembrança parece fazer tudo mudar. Seu humor já não é mais o mesmo, sua vida fica mais leve e parece que faz querer realizar uma boa ação imediatamente: pode ser ligar pra família, sair com a namorada, a esposa, a companheira, sair com os amigos, dar um 'oi' mais sincero para o porteiro, para o zelador, para o recepcionista, para o balconista, faz querer praticar atividade física de forma empolgada e achar que tudo é possível a partir daquele momento... É algo misterioso, mas realmente acontece! Mais interessante é que este álbum foi criado e lançado quando eu ainda não era nem uma ideia por parte dos meus geradores, mas o poder que ele exerce em minha vida, trazendo à tona momentos eternos, imagens de uma natureza bela e escondida, particular à minha concepção, e também recordações com um profundo efeito nostálgico, é algo notável. Lembro-me particularmente daquela viagem...


Pink Floyd (da esquerda para a direita: Nick Mason, Syd Barrett, David Gilmour, Roger Waters e Richard Wright)

David Gilmour (ídolo pessoal)

Roger Waters

Syd Barrett (1946-2006)

Richard Wright (1943-2008)

Nick Mason

   Formado em 1965 por quatro estudantes universitários ingleses, o Pink Floyd inicialmente era composto por Roger Waters, Nick Mason, Richard Wright e Syd Barrett. Este último era o mentor criativo do grupo no álbum inicial e nos primeiros singles; após alguns títulos para a banda, ele cunhou o nome 'Pink Floyd' justapondo os primeiros nomes de Pink Anderson e Floyd Council, dois músicos de blues, americanos, sobre quem ele tinha lido numa nota sobre um LP de 1962 de Blind Boy Fuller (um guitarrista de blues, também americano), por Paul Oliver, um historiador inglês de arquitetura e estudioso de ritmos afro-americanos. Ele nomeou seus dois gatos de estimação de Pink e Floyd. Syd também gostava de dizer que o título foi transmitido a ele por um disco voador enquanto ele estava sentado na Glastonbury Tor, uma colina em Glastonbury, Somerset, Inglaterra. Com uma personalidade cada vez mais doentia, errática, imprevisível, e seu grande envolvimento com drogas (especialmente o LSD), ele acabou deixando o grupo em abril de 1968, e nesta época o grupo já era composto por um quinteto, já que em dezembro de 1967, pouco antes de Syd deixar a banda, a ela passou a se integrar David Gilmour, que juntamente com Nick Mason permanecem como os componentes originais da banda nos tempos modernos (a banda terminou em 1995 e reuniu-se novamente em 2005). Especula-se que Syd Barrett era acometido por esquizofrenia, ou ainda por transtorno bipolar e mesmo por Síndrome de Asperger, um espectro do autismo. Em 1979, Richard Wright, o tecladista, deixou o grupo, seguido de Roger Waters, o baixista e um dos principais mentores do grupo após a saída de Syd, em 1985. Wright faleceu em 2008, dois anos após a morte de Syd Barrett. Tendo lançado oficialmente 14 álbuns de estúdio, o Pink Floyd conquistou sucesso mundial com sua música psicodélica e progressiva, sendo reconhecido também pelo uso de letras filosóficas, experimentação com o som e shows ao vivo bastante elaborados. 


Show do Pink Floyd em 1989 em Veneza, Itália (uma das demonstrações das grandezas nos shows)

Pulse, show do Pink Floyd em 1994 (outra demonstração de grandiosidade em shows)

   Condensando as explorações sonoras de Meddle, álbum de 1971, com verdadeiras músicas, adicionando-se uma produção exuberante e impecável para suas seções instrumentais viajantes, o grupo inadvertidamente projetou seu marco comercial com o álbum The Dark Side of The Moon (DSotM). A principal revelação do DSotM é o que um pouco de foco faz por uma banda. Waters escreveu uma série de canções sobre situações mundanas, detalhes cotidianos que não são tão impressionantes em si, mas quando acoplados ao pano de fundo sonoro lento, com paisagens sonoras atmosféricas e efeitos sonoros cuidadosamente colocados do Floyd, este conjunto de canções alcança uma ressonância emocional. Mas o poder verdadeiro do álbum é a música sutilmente texturizada, que evolui a partir do rock mais intenso, neo-psicodélico ao jazz fusion e ao blues/rock antes de voltar novamente à psicodelia. É denso em detalhes, mas com cadência de ritmo gradativa, criando seu próprio mundo escuro e assustador. Como música envolve emoção e cada um tem sua opinião acerca do que pode ser o melhor álbum de uma banda, pode-se dizer que talvez haja um álbum melhor do grupo do que o DSotM, mas, com certeza, nenhum disco define tão bem o Pink Floyd quanto este.


Capa do álbum The Dark Side of the Moon,  de 1973
 
   Embora o álbum DSotM tenha sido lançado somente em março de 1973, o conceito e composição das músicas foram desenvolvidos antes, tendo sido resgatadas de gravações prévias não aproveitadas e divulgadas mesmo em turnês da banda pelo mundo, o que permitiu o acabamento perfeito das belíssimas e viajantes canções que ficaram eternizadas por fãs e não fãs. É o oitavo álbum de estúdio do grupo e, à sua apresentação inicial, percebeu-se que não continha as excursões instrumentais extendidas que caracterizaram seus trabalhos após a saída do guitarrista, principal letrista e um dos fundadores, o Syd, em 1968. Os temas do trabalho, alguns já comentados anteriormente, envolvem conflitos, ganância, a passagem do tempo, a doença mental, entre outros, tendo sido este último tema parcialmente inspirado na deterioração do estado mental de Barrett. Interessante que foi ideia de Roger Waters, o principal letrista após a saída daquele, lançar um álbum conceitual que lidasse com coisas que deixam as pessoas malucas, inspirado também pelo estilo de vida árduo que a banda levava em várias e várias turnês. O material que foi reunido ficou inicialmente conhecido por The Dark Side of the Moon, mas este nome teve que ser mudado para Eclipse após a descoberta de que aquele título já tinha sido usado por um outro grupo, conhecido por Medicine Head; como o álbum homônimo desta banda acabou não fazendo sucesso, o Pink Floyd acabou resgatando o título anterior. É válido notar, ainda, que o título faz alusão mais à alienação mental do que à astronomia, tanto que antes de ser lançado foi apresentado à imprensa como The Dark Side of The Moon: A Piece for Assorted Lunatics.
   A produção da capa do álbum foi desenvolvida pela companhia Hipgnosis, na verdade com Storm Thorgerson e Aubrey Powell como produtores, tendo o design sido desenvolvido por aquele, e a ilustração por George Hardie. O tecladista, Richard Wright, sugeriu à companhia criar algo limpo, elegante e simples, além de gráfico, e não fotográfico. A ideia em si surgiu em um livro de física, onde se encontrou uma imagem de luz atravessando um prisma; ao ver a ilustração, associou-se a mesma à iluminação dos shows do grupo e aos temas que se desenvolviam nas letras de Waters para o álbum (ambição e loucura). A formatação de uma imagem triangular realça justamente a junção destes três grandes motivos a serem mesclados na capa altamente enigmática. A junção dos espectros com a ilustração na contra-capa do álbum e com o interior deste realça a importante ideia de encadeamento das canções, a ideia de um álbum conceitual.Os batimentos cardíacos ouvidos na primeira canção do disco, 'Speak to Me', são apresentados graficamente no espectro de luz no interior do álbum, em uma de suas cores. Percebe-se que, no espectro de luz que é emitido após a luz atingir o prisma, somente 6 cores são representadas, com a ausência do anil; há teorias que falam que esta cor esteve ausente pela dificuldade técnica à época de colocar uma cor tão parecida com o violeta, e há quem diga que representa a ausência de Syd Barrett no grupo em um disco tão inspirado nele (embora não tenha havido 7 componentes originalmente no grupo, mas 5). O encarte no interior contém diversas imagens de temas com pirâmides e triângulos, e, em resumo, tudo isto representa, de forma simples e elegante, como quis Wright, a mistura de som e luz que é o Pink Floyd.


Capa e contra-capa do álbum mostrando a continuidade das ilustrações


Capa interior do álbum, em continuidade com a capa e contra-capa

Algumas ideias e temas triangulares e piramidais no interior do encarte


   Interessante tentar perceber, ainda, a que pode remeter a essência do álbum. Quer dizer, fazer alusão à alienação mental com um título astronômico enigmático é, no mínimo, instigante. Os homens sempre vêm tentando descobrir que há vida fora do nosso planeta, e lá no alto, nossa belíssima Lua, o satélite solitário, tem somente uma face voltada para nós; a outra, enquanto escura, não nos é visível, mas está virada para o universo lá fora, para todo o espaço sideral. Mas, a metáfora com o título e a ideia do álbum está justamente nisto; quer dizer, o disco não trata particularmente da vida fora da Terra, para além dela, ou do espaço, ou de alienígenas, ou do cosmos, ou destas coisas astronômicas, mas daqui mesmo, do nosso planeta, onde tentamos viver sob a mesma Lua, sob o mesmo Sol, e no qual cada ser humano parece ser inerte, vivendo seus próprios conflitos, com seus próprios demônios, e, nisto, cada ser humano tendo o seu lado negro. Em um raro fenômeno astronômico, a Lua encobre o Sol (o eclipse solar), e nós, aqui na Terra, só em alguns lugares podemos presenciar tal efeito visualmente; daí surge outro insight: ora, em nosso cérebro há talvez tantas ou mais células do que o número de estrelas lá fora, no espaço sideral, e existem tantas estrelas quantos grãos de areia cá no nosso planeta - se somos capazes de enxergar e perceber a grandeza do nosso universo, então, talvez, sejamos tão grandes como é tudo isto que está lá fora. Assim, nosso cérebro, pequeno em relação às dimensões do que está no universo, não deixa, nem por isto, de ser tão complexo quanto ele; e a questão do eclipse talvez se represente em nós como uma tentativa de tentar encobrir o verdadeiro sentido de nossas vidas ao mostrar o nosso lado negro. Como a Lua, encobrindo aos poucos a luz do Sol, apagando-a gradativamente, de certa forma nós vamos deixando o lado negro ser a única parte evidente, e talvez o fim de nossa vida, a morte, ganhe todo o sentido, a ideia de ciclo que se completa; assim, no final de tudo, não há lado negro, na verdade, tudo é escuridão. A última frase do álbum é justamente isto: 'There is no dark side in the moon, really. As a matter of fact, it's all dark'. E aí, acho que o mais interessante nisto é que o Sol possui energia suficiente para nos destruir rapidamente; isto não ocorre por alguns caprichos da natureza. E, este Sol, não podendo se manter imponente e visível quando de um eclipse solar, já que não o vemos, mas somente um lado escuro da Lua, assim também somos nós, lutando contra o lado negro de nossas vidas o tempo todo, insistindo em sobreviver e viver. É um tanto transcendental e filosófica estas elucidações, mas é bem verdade de certo modo.
   O álbum foi gravado em duas sessões no Abbey Road Studios, em Londres, Inglaterra, entre maio de 1972 e janeiro de 1973. A primeira canção a ser gravado foi 'Us and Them', seguida, seis dias depois, por 'Money'; depois, viriam os registros de 'Time' e 'The Great Gig in the Sky'. Daí, veio uma pausa de dois meses, em que a banda se dedicou a suas famílias e se preparou para a turnê americana de 1972. Com relação a 'The Great Gig in the Sky', uma cantora convidada, que frequentemente se apresentava em gravações em sessões no estúdio (uma espécie de freelancer para músicas de outras bandas), foi convidada pelo engenheiro de som e produtor que estava envolvido no disco, Alan Parsons; o nome da cantora é Clare Torry. É válido dizer que o que se escuta na música é muito criação dela mesma, e o resultado foi muito comemorado por Richard Wright. Na época, ela recebeu 30 libras pelo trabalho (hoje seria o equivalente a 300 libras), mas em 2004 ela brigou por royalties afirmando ter sido uma das co-autoras da música, juntamente com Wright; ela obteve sucesso nesta empreitada, mas os termos do acordo seguem em discussão. O fato é que, após 2005, a imprensa se refere sempre a esta música como de autoria de ambos: Wright e Torry. Bom, mas retornando da turnê americana, que só terminou em janeiro de 1973, o grupo gravou 'Brain Damage', 'Eclipse', 'Any Colour You Like' e 'On The Run'. Os trabalhos que viriam na instrumentação de 'Speak to Me' e o início de 'Money' e 'Time' foram notáveis. Os batimentos do coração humano que podem ser ouvidos em 'Speak to Me', 'On the Run', 'Time' e 'Eclipse' dão a ideia de continuidade do álbum, e foram criados por uma espécie de tambor adaptado. Os relógios do início de 'Time' foram inicialmente criados como um teste quadrifônico de Parsons; o engenheiro gravou cada som de relógio de uma relojoaria antiga, e, embora estas gravações não tenham sido criadas especificamente para o álbum, elementos do material foram usados na faixa. Os sons ouvidos no início de 'Money' foram criados ao se misturar sons gravados por Waters de moedas se chocando, papel se rasgando, uma caixa registradora em funcionamento e uma máquina de somar sonora.


Alan Parsons

Clare Torry

   No tocante às ideias das canções, cada lado do álbum (como conceito de LP) é uma peça de música contínua. As cinco faixas de cada lado refletem vários estágios da vida humana, começando e terminando com uma batida de coração, explorando a natureza da experiência humana e da empatia. 'Speak to Me' e 'Breathe', juntas, ressaltam os elementos mundanos e fúteis da vida que acompanham a sempre presente ameaça de loucura e a importância de se viver a própria vida. Ao se mudar a cena para um aeroporto, em 'On the Run', os sons evocam a ansiedade das viagens modernas, em particular o medo de voar de Wright. Em 'Time', analisa-se a maneira como a passagem do tempo pode controlar a vida de cada um e apresenta uma dura advertência para aqueles que mantêm o foco em aspectos mundanos, o que quase sempre é seguido de um retiro na solidão, como apresentada em 'Breathe (Reprise)'. O primeiro lado do álbum termina com Wright e a vocalista Clare Torry em uma metáfora espiritual para a morte, em 'The Great Gig in the Sky'. Iniciando-se com sons de caixas registradoras, a primeira canção do segundo lado, 'Money', zomba da ganância e do consumismo com letra sarcástica e aparentemente pouco séria e com diversos efeitos sonoros que lembram o dinheiro (ironicamente, esta música tem sido a de maior sucesso comercial do álbum, inclusive com diversas versões cover por parte de outras bandas). 'Us and Them' aborda o isolamento do deprimido com o simbolismo do conflito e o uso de simples dicotomias para descrever relacionamentos pessoais. 'Any Colour You Like' remete à falta de escolha que se tem na sociedade. 'Brain Damage' lança um olhar sobre a doença mental como resultante do ganho de fama e do sucesso, estando estes acima das necessidades do 'eu'. O álbum termina com 'Eclipse', que envolve os conceitos de alteridade e de unidade, enquanto obrigando o ouvinte a reconhecer os traços comuns compartilhados pela humanidade.
   Outra ideia interessante apresentada no álbum são trechos de falas entre e ao longo das músicas. Durante as sessões de gravação, Waters recrutava o pessoal da equipe de produção e os ocupantes temporários do estúdio para responder uma série de perguntas impressas em cartões. As entrevistas tinham lugar em frente a um microfone em um estúdio escuro e diversas eram as perguntas, tais como: 'Qual a sua cor favorita?', 'Qual a sua comida preferida?', e ia chegando a temas mais contudentes e centrais no conceito do álbum, como 'Quando foi a última vez que você foi violento?', esta seguida imediatamente por 'Você estava com a razão?'. As falas mais notáveis entre estas respostas são 'I am not frightened of dying. Any time will do: I don't mind. Why should I be frightened of dying? There's no reason for it - you've got to go sometime' e 'there is no dark side in the moon, really. As a matter of fact, it's all dark' e foram proferidas pelo porteiro irlandês do estúdio, Gerry O'Driscoll. Paul McCartney e Linda McCartney também foram entrevistados, mas suas respostas não foram colocadas no álbum porque observa-se um 'grande esforço em parecer engraçado'.


Gerry O'Driscoll

   Tendo sido um sucesso comercial desde o seu lançamento, estima-se que já foram vendidos em torno de 50 milhões de cópias pelo mundo até hoje. Foi remasterizado e relançado por duas vezes e tem sido alvo de covers incessantemente. Dois singles foram lançados e também são sucesso indiscutível comercialmente: 'Money', lançado em 7 de maio de 1973, e 'Time'/'Us and Them', lançado em 4 de fevereiro de 1974. É o álbum mais popular do Pink Floyd entre fãs e críticos e é frequentemente apresentado em rankings como um dos maiores álbuns da história do rock em todos os tempos.
   Uma última observação que parece mais um ato de presunção do que qualquer outra coisa é o que se convencionou chamar de Dark Side of the Rainbow, ou de Dark Side of Oz ou The Wizard of Floyd, que seria uma sincronização do álbum DSotM com o filme O Mágico de Oz, de 1939. No filme acoplado às músicas do álbum, há momentos em que o álbum e o filme parecem corresponder perfeitamente um ao outro. Os membros da banda e outros envolvidos na produção do álbum afirmam e sempre afirmaram que qualquer relação entre ambos é mera coincidência. Um importante aspecto que é frequentemente discutido seria a respeito das dificuldades técnicas que haveria para o grupo e a produção ao mesmo tempo observar o filme e tentar sincronizar com os sons e as músicas em si do álbum. Além disto, é pouco provável que o processo de criação não tenha sido livre, mas atrelado a ideia do filme em cada momento particular; não creio que haja alguma relação na verdade, mas uma coincidência instigante. As coincidências são diversas, como por exemplo quando Dorothy começa a correr e canta-se o verso 'no one told you when to run' de 'Time'. Imaginação sem limites! Se quiser gastar um tempo em ver esta estranha coincidência, deixo o vídeo que ficou famoso; o bom de assistir a ele é que você passa a conhecer, na íntegra, a versão de estúdio do álbum.




   Enfim, trata-se de um álbum muito importante na história da arte e extremamente requintado, mostrando o que é possível se criar a partir do imaginário humano, e como isto pode se refletir perfeitamente no gosto e nas emoções de outras pessoas. Ainda lembro daquela viagem; enquanto subindo a serra, imaginava o poder daquelas músicas, daquelas letras, com reflexões muito incisivas em minhas percepções naquele momento, e vendo a natureza como a via naquele instante, as músicas faziam um sentido sem fim, e também me faziam viajar de volta para casa, para perto do mar, para memórias de outros tempos, e mais sentido surgia. Em alguns momentos, enquanto dirigia, minha esposa dormia, e enquanto eu guiava o carro, era como se as canções me levassem pelo percurso perfeito. Acho que muito se vive ao se aprofundar neste disco, um marco em muitas vidas e que reforça o poder da arte na existência humana. Eterno, sem dúvida! Obra-prima indiscutível! Na próxima semana, complementarei esta postagem aprestando as ideias de cada canção em si, discutindo suas letras, seus sons, etc. Uma boa semana a todos! Por enquanto, se você ainda não conhece o álbum, deixo uma versão ao vivo para você ouvir, sem compromisso, à toda a sua execução. Deleite-se com o Pink Floyd, a banda de 'som e luz'!



sábado, 12 de janeiro de 2013

O Sol é Para Todos

   Alguém escreveu uma estória muito interessante e instigante em 1960 nos Estados Unidos da América, com um brilho na técnica formal e ao mesmo com uma simplicidade convidativa, pouco antes dos movimentos dos direitos civis naquele país. Traduzido no Brasil como 'O Sol é Para Todos', o original To Kill a Mockingbird tem este título mais representativo da essência do livro. Tendo ganhado o Prêmio Pulitzer em 1961, este é um daqueles típicos livros únicos que mantiveram a grandiosidade do autor ao longo dos tempos, tendo sido eternizado no universo da Literatura como algo grande e perfeito, que gera discussões e reflexões ainda muito tempo após a conclusão da leitura.
   Nelle Harper Lee nasceu em 28 de abril de 1926 numa cidade chamada Monroeville, no estado do Alabama. Entre seus amigos de infância no sul conservador do país americano estava um outro grande personagem do mundo literário, Truman Capote, que serviu de inspiração para um dos personagens do livro. Apesar de ter muitos elementos da infância da escritora, embora não seja intensamente autobiográfico, eventos que ocorreram em 1931 próximo a Scottsboro, no Alabama, portanto quando ela tinha 5 anos, serviram de inspiração para que criasse este romance. Nove jovens negros foram acusados de ter cometido estupro contra duas jovens brancas; após desgastante e amargo processo de julgamento, cinco dos acusados foram condenados a longa permanência na prisão. Muitos advogados proeminentes e outros cidadãos americanos enxergaram a condenação como motivada fortemente por preconceito racial. Também, suspeitou-se de que as jovens mulheres que acusaram os negros estavam mentindo e, julgamento após julgamento, as suas declarações se tornavam cada vez mais duvidosas.


Harper Lee (1926-)


Truman Capote (1924-1984)

   Lee começou a escrever o livro em meados da década de 1950, após ter se mudado para Nova Iorque para seguir carreira literária. Na época da publicação da obra, as críticas foram um tanto díspares: alguns críticos acharam a voz narrativa de uma garota de 9 anos de idade pouco convincente e consideraram o romance essencialmente moralístico; entretanto, na atmosfera de intensa discussão racial do início da década de 1960 nos Estados Unidos, o livro se tornou um grande sucesso popular, tendo ganhado o Pulitzer em 1961 e vendido aproximadamente 15 milhões de cópias (hoje, em torno de 30 milhões de cópias). Dois anos após esta premiação, um filme com a adaptação do livro foi lançado e foi propriamente premiado: recebeu 8 indicações ao Oscar, tendo vencido nas categorias de melhor ator (Gregory Peck), melhor direção de arte e melhor roteiro adaptado. Em 1993, Lee escreveu um prefácio breve para o seu livro, pedindo que as futuras edições do mesmo sejam poupadas de introduções críticas, pois ele 'ainda diz o que se propôs a dizer, tendo sobrevivido sem preâmbulos até então'. A obra continua a ser solicitada em listas de leitura no ensino médio, nas faculdades, amado por milhões de leitores em todo o mundo principalmente por sua descrição atraente da inocência infantil, a condenação contundente do preconceito racial e a afirmação de que a bondade humana pode suportar o ataque de qualquer mal.


Capa de uma das edições de To Kill a Mockingbird
(especial para mim porque foi a edição que li)
   
   Descrevendo resumidamente o livro, Scout Finch vive com seu irmão, Jem, e o pai viúvo de ambos, Atticus Finch, na pacata cidadezinha de Maycomb, no Alabama. Sofrendo com a Grande Depressão, a cidadezinha passa por alguma dificuldade, mas Atticus é um advogado proeminente, e a família Finch vive razoavelmente bem em comparação com o restante daquela sociedade. Durante um verão, os irmão fazem amizade com um outro garoto, chamado de Dill (inspirado em Truman Capote), que veio morar pela vizinhança durante esta estação, e os três vão vivendo aventuras e estórias juntos. Nestas aventuras, eles ficam fascinados com uma casa assustadora na rua deles, conhecida por Radley Place. Esta pertence ao senhor Nathan Radley, cujo irmão, Arthur (apelidado por Boo), nela tem vivido sem ter dela saído por anos e anos. Scout inicia os estudos escolares, mas detesta a escola na primeira vez que para ela vai. No caminho de ida e volta, algumas aventuras vão acontecendo e o ponto central, por algum tempo, é a casa dos Radley. O interessante é a presença moral marcante de Atticus, que põe um fim às indagações e conceitos sobre os Radley, incitando os garotos a tentarem se colocar na perspectiva da outra pessoa sempre antes de fazer qualquer julgamento. Apesar de os garotos ficarem se perguntando como é Boo Radley, imaginando-o como alguém horripilante e a ele sempre se remetendo de forma assombrosa, e achando que ele nunca sai de casa, é evidente em algumas passagens a presença dele mesmo perto dos garotos, ou a interação dele com os garotos. Para a consternação da comunidade branca racista de Maycomb, Atticus concorda em defender um homem negro, chamado de Tom Robinson, que foi acusado de ter estuprado uma jovem mulher branca. Por causa desta decisão de Atticus, os dois filhos são vítimas de constante abuso e forte preconceito por parte das outras crianças. E é ensinando os filhos como se portar, como enxergar o ponto de vista dos outros, que Atticus se torna um brilho particular no livro, sendo de uma primorosidade dificilmente vista por aí na vida real, mesmo sabendo que tais personagens existem. Quando o negro acusado é transferido para uma prisão antes de ser julgado, um pequeno grupo de pessoas se reúne para linchá-lo. Atticus enfrenta este grupo na noite anterior ao julgamento; os dois irmãos, Scout e Jem, acabam aparecendo no local e Scout reconhece um dos homens no grupo. Inocentemente, ela começa a perguntar de forma polida sobre o filho daquele que ela reconhece, e isto acaba envergonhando o grupo, que acaba se dispersando. No dia do julgamento, as crianças vão até a corte e ficam em meio ao balcão dos negros; Atticus provê claras evidências de que os acusadores, Mayella Ewell e seu pai, Bob, estão mentindo. Apesar de todas as evidências que demonstram a certeza da inocência de Tom, todo o juri, composto de brancos, o condena. Posteriormente, já na prisão, Tom acaba tentando fugir e é morto a tiros. Na sequência do julgamento, Jem tem sua fé na justiça bastante abalada, caindo em depressão e grande desânimo. A despeito do veredicto, Bob Ewell sente que Atticus e o juiz o fizeram de tolo e jura vingança; ele ameaça a viúva de Tom, tenta entrar na casa do juiz e finalmente acaba atacando Jem e Scout enquanto eles estão se deslocando para casa durante uma noite voltando de uma festa de Halloween. Boo Radley intervém, entretanto, salvando as crianças e esfaqueando Bob, que acaba morrendo. Boo carrega Jem para a casa de Atticus, onde o xerife, considerando proteger Boo, insiste que Bob Ewell caiu sobre sua própria faca e acabou morrendo por ele mesmo como uma fatalidade. Após sentar e conversar um pouco com Scout, esta acaba levando Boo até a casa deste. Mais tarde, Scout sente como se ela pudesse finalmente imaginar como é a vida de Boo. Para ela, ele se tornou, enfim, um ser humano. Com esta percepção, Scout segue o conselho de seu pai de praticar a simpatia e a compreensão, demonstrando assim que suas experiências com o ódio e o preconceito não irão manchar a sua fé na bondade humana.


Adaptação para o cinema de To Kill a Mockingbird (em 1962)

Gregory Peck (1916-2003), ator que interpretou Atticus Finch

   No livro, percebem-se alguns temas que merecem destaque. A coexistência do bem e do mal é o mais importante dos temas; o livro explora a natureza moral dos seres humanos, ou seja, as pessoas são essencialmente boas ou essencialmente más? O romance discute esta questão dramatizando a transição de Scout e Jem de uma perspectiva de inocência infantil, em que eles assumem que as pessoas são boas porque nunca haviam visto o mal, para uma perspectiva mais adulta, em que eles confrontaram o mal e precisam incorporá-lo na sua compreensão do mundo. Como resultado deste retrato da transição da inocência para a experiência, um dos subtemas importantes do livro envolve a ameaça que o ódio, o preconceito e a ignorância tem para os inocentes: pessoas como Tom Robinson e Boo Radley não estão preparadas para o mal que elas encontram, e, como resultado, eles acabam sendo 'destruídos'. A voz moral do livro é incorporada por Atticus Finch, que é virtualmente único no romance na medida em que ele experimentou e compreendeu o mal sem ter perdido sua fé na capacidade dos homens para o bem. Ele entende que, mais do que serem simples criaturas de bem ou criaturas más, a maioria das pessoas tem ambos, o bem e o mal, dentro de si, e o importante é apreciar as boas qualidades e compreender as más qualidades tratando os outros de forma simpática e tentando enxergar a vida da perspectiva dos outros. Outro tema profundo é o da importância da educação moral; devido ao fato de a exploração das questões morais maiores no romance se dar sob a perspectiva de crianças, a educação infantil está necessariamente envolvida no desenvolvimento de todos os temas do livro. Em certo sentido, o tema da educação das crianças é recorrente ao longo do romance, e é explorado de forma mais importante pela relação de Atticus com seus dois filhos, aquele sempre tentando ensiná-los a ter uma consciência moral. Um outro tema é a existência da desigualdade social; as diferenças de status social são exploradas em grande parte através da hierarquia social complicada de Maycomb, com prós e contras que constantemente confundem as crianças. Os Finch são relativamente bem sucedidos e ficam perto do topo da hierarquia social, com a maioria dos outros habitantes da cidade abaixo deles. Mas as rígidas divisões sociais que compõem grande parte do mundo adulto são revelados no livro como irracionais e destrutivos. A autora usa a perplexidade das crianças quanto à desagradável estratificação da sociedade de Maycomb como uma crítica ao papel do status de classe e, finalmente, ao preconceito nas interações humanas.
   Alguns motivos também são evidentes na obra. Os detalhes góticos, por exemplo, são bem explorados na medida em que as forças do bem e do mal no livro parecem ser maiores do que a pequena cidade do sul em que a estória se passa teria capacidade de comportar. Em Literatura, o termo gótico se refere a um estilo de ficção primeiramente popularizado no século XVIII na Inglaterra, apresentando ocorrências sobrenaturais, configurações sombrias, assombrações, luas cheias, etc. Entre os elementos góticos em O Sol é Para Todos podem ser percebidos a neve que surge de forma um tanto não natural, o fogo que destrói a casa da senhora Maudie, as superstições das crianças acerca de Boo Radley, o cachorro louco em quem Atticus atira, e a noite sinistra da festa de Halloween em que Bob Ewell ataca as crianças. Estes elementos, meio fora de lugar na normalmente calma e previsível Maycomb, criam uma tensão no romance e servem para prenunciar eventos perturbadores do julgamento e suas consequências. Um outro motivo presente é o da vida na cidade pequena; contrabalançando os elementos góticos na estória estão os valores antiquados de uma cidade pequena, que vão se manifestando ao longo do romance. Como se para contrastar com todo o suspense e grandeza moral do livro, Lee enfatiza o passo lento e a vida bem humorada de Maycomb. Ela frequentemente justapõe os valores de uma cidade pequena com as imagens góticas na tentativa de permitir um exame mais de perto das forças do bem e do mal. O horror do fogo, por exemplo, é abrandado pela cena reconfortante das pessoas de Maycomb se unindo para salvar os pertences da senhora Maudie.
   Mas, para mim, a força do livro e a mensagem mais bonita está no símbolo que dá título a ele. Apesar de ter pouca conexão literal com a trama do romance, o título carrega uma grande carga de peso simbólico no livro. Nesta estória de inocentes destruídos pelo mal, o 'mockingbird' vem a representar a ideia de inocência. Este pássaro não tem uma tradução feliz literal em português; mas, o pássaro que dá título ao livro é o Northern Mockingbird (ou Mockingbird do Norte), sua espécie é o Mimus polyglottos e ele é famoso por conseguir representar uma grande variedade de sons, sendo um talentoso cantor e imitador (acredita-se que o macho atraia a fêmea com seu variado repertório de sons). Em uma das bonitas passagens do livro em que se apresenta o título, Atticus (reforçado pela senhora Maudie) ensina aos garotos que o 'mockingbird' é um pássaro que não faz nada a não ser cantar belas canções para que nós apreciemos; eles não destroem os jardins das pessoas, não fazem ninhos em milharais - somente cantam seus corações para nós. Por isto, conclui, é um pecado matar um 'mockingbird'. Ou seja, este pássaro representa a mais pura inocência da existência, por isto matá-lo é como matar um inocente, que não pode se defender e que não tem culpa de nada. Ao longo do livro, neste sentido, vários personagens podem ser identificados com o 'mockingbird', como Tom Robinson, Dill e Boo Radley. Outra interessante conexão de expressão de bondade com a referência aos pássaros é que o sobrenome de Atticus, Scout e Jem é 'Finch', que é um outro tipo de pequeno pássaro, e assim parece haver uma indicação de que eles são, de certa forma, particularmente vulneráveis ao mundo racista de Maycomb. O mais importante dos 'mockingbirds' no livro é o personagem de Boo Radley; à medida que o romance progride, as atitudes das crianças com relação a ele vão mudando, e isto é uma importante medida do desenvolvimento da inocência para uma perspectiva moral mais madura. Boo, uma criança inteligente arruinada por um pai cruel, é um importante símbolo do bem que existe dentro das pessoas. A despeito da própria dor que sofreu com a vida, a pureza de seu coração interage com as crianças. Ao salvar Jem e Scout de Bob Ewell, Boo prova ser um símbolo supremo da bondade.


Mimus polyglottos (o 'mockingbird' do norte)

   É, por fim, uma obra-prima da Literatura Universal, sendo altamente engrandecedor e enaltece as virtudes humanas. Ensina que, agir algumas vezes com desonestidade, ainda que num mundo em que muitos não são honestos, não deve ser o fim buscando por nenhum ser humano; antes de agir de forma descortês, indigna e indecorosa, deve-se tentar compreender colocando-se de forma altruística no lugar daquele que assim age. Agir de forma desonrosa num mundo de desonestos é querer justificar o próprio erro com o erro das outras pessoas. E o personagem de Atticus Finch moldou culturalmente a sociedade americana da época do que deveria ser um exemplo de pai, de integridade, de poço de virtude humana. É aquele ser que age de forma decorosa num mundo de indecorosos, mas que nem por isto julga estes, mas, antes, enxerga o bem e o mal em cada um, e sempre procura compreensão 'calçando os sapatos' daqueles que assim agem, ou seja, coloca-se no lugar da outra pessoa, tentando obter a perspectiva deste. A truly masterpiece!!!

sábado, 5 de janeiro de 2013

Os Portões do Inferno

   A concepção do inferno é algo que recheia muito o imaginário humano. Podemos percebê-la nas diversas formas de expressão da arte e mesmo na representação da realidade, como na condição em que se encontram os diversos sentimentos das pessoas em alguns momentos de suas vidas. Mas a definição do termo 'inferno' tem na sua essência a concepção religiosa dos cristãos, e seria um lugar para onde vão as almas dos pecadores após a morte. Ao defini-lo desta forma, logo nos chegam à mente também os conceitos de 'paraíso' e de 'purgatório'. Ainda hoje é difícil dizer em que âmbito se deve discutir estas percepções: científico? Fé? Enquanto não se tem uma resposta completa por parte de um dos lados, é fato que, na arte, a representação de um imaginário é sempre cabal e quase nos dá certeza da existência desta ideia em nossas vidas. Mas, será que estas compreensões somente se aplicam quando se remete à fé de cada um? Será que os milagres, que são eventos transcendentais que não se explicam pelas leis da natureza, serão sempre inexplicáveis? Dependem sempre dos conceitos e crenças de cada um? Será que é apenas uma questão de interpretação, e, como na relatividade, depende do modo como se vê? Se quantificados, sou levado a crer que dia após dia pequenos e grandes milagres acontecem nas vidas de pessoas distantes, próximas e mesmo em nós mesmos... Depende de como isto tudo é percebido e apreendido por nossas concepções, nos mais diversos campos.


Santuário de Fátima, em Portugal

   Em Portugal, Fátima, uma cidade que é sede de freguesia (a menor divisão administrativa naquele país, o que geralmente corresponde a paróquia civil em outros países), subdivisão do concelho de Ourém (em Portugal, concelho é uma divisão territorial administrada por um município), abriga um Santuário dos mais famosos dentre os marianos pelo mundo. Este Santuário se localiza na Cova da Iria, localidade em que, segunda a Igreja Católica, a Nossa Senhora do Rosário apareceu para três pequenos pastores em 1917. No ano anterior ao das aparições de Nossa Senhora, o Anjo da Paz apareceu a Jacinta Marto (7 anos de idade), Francisco Marto (9 anos) e Lúcia de Jesus dos Santos (10 anos). Jacinta e Francisco eram irmãos, e Lúcia era prima destes. A partir de 13 de maio de 1917, a Nossa Senhora apareceria a cada mês, sempre no dia 13, aos três pequenos pastores, em uma azinheira que tinha pouco mais de um metro de altura na Cova da Iria; em suas aparições, a Nossa Senhora sempre pedia que eles deveriam rezar bastante para a salvação das almas e ia revelando alguns eventos, que posteriormente passaram a fazer parte do 'segredo de Fátima', interpretado como tendo três partes. Algumas das interpretações que se seguiram foram o fim da Primeira Guerra Mundial, o fim do Comunismo e o atentado ao papa João Paulo II em 13 de maio de 1981 no Vaticano. Nossa Senhora também revelou que dois dos pequenos pastores, Jacinta e Francisco, em breve estariam com ela no paraíso... Isto realmente veio a acontecer, já que Francisco morreu em 1919 e Jacinta em 1920, ambos vítimas de complicações do que hoje é conhecida por Gripe Espanhola, que se alastrou pelo continente europeu a partir do fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918. 


Os três pequenos pastores da Cova da Iria: Lúcia de Jesus, Francisco Marto e
Jacinta Marto (da esquerda para a direita)

   Mas nisto tudo, dois eventos são dignos de nota para os fins desta postagem. Na terceira aparição de Nossa Senhora, em 13 de julho de 1917, nos relatos da irmã Lúcia (a única que sobreviveu por mais tempo entre os três pequenos pastores e que seguiu a vida eclesiástica) em suas Memórias (publicadas em quatro partes e fonte de muito do que se sabe das aparições e do segredo de Fátima), está escrito que 'mostrou-se um grande mar de fogo que parecia estar debaixo da terra. Mergulhados nesse fogo, os demônios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras, ou bronzeadas com forma humana, que flutuavam no incêndio levadas pelas chamas que d'elas mesmas saíam, juntamente com nuvens de fumo, caindo para todos os lados, semelhante ao cair das fagulhas nos grandes incêndios sem peso nem equilíbrio, entre gritos e gemidos de dor e desespero que horrorizava e fazia estremecer de pavor. Os demônios distinguiam-se por formas horríveis e asquerosas de animais espantosos e desconhecidos, mas transparentes e negros.'. Esta foi a descrição de um dos eventos na primeira parte do segredo, e foi tida como 'A Visão do Inferno', sendo uma das provas de sua existência... 


Foto do dia do 'Milagre do Sol'

Foto do dia do 'Milagre do Sol'

Nossa Senhora do Rosário e os três pequenos pastores

Representação do 'Milagre do Sol'

   Outro importante evento se deu na última aparição, em 13 de outubro de 1917. Ora, conforme os pequenos pastores compareciam às aparições previamente marcadas, e por serem crianças, não conseguiam guardar segredo durante todo o tempo... Tanto foi assim que, na aparição de 13 de agosto, as crianças não compareceram à azinheira porque estavam sob poder do então administrador do concelho de Ourém, Artur de Oliveira Santos, a responder questionamentos em investigação sobre as aparições e sobre o segredo; as crianças somente compareceram no dia 19 de agosto à aparição daquele mês. Mas, com as pessoas do local e das redondezas já sabendo ou suspeitando do que se passava por ali, e com a Nossa Senhora tendo anunciado que realizaria um milagre no dia 13 de outubro, estima-se que em torno de 70 mil pessoas compareceram à Cova da Iria naquele dia. Em um dia bastante chuvoso e cinzento, relata-se que, naquele dia, ao que parece por volta das 13 horas e 30 minutos locais, 'a chuva que caía cessou, as nuvens entreabriram-se, deixando ver o sol, que se assemelhava a um disco de prata fosca, e que podia ser fitado sem dificuldade, sem risco de cegueira. A imensa bola começou a girar vertiginosamente sobre si mesma como uma roda de fogo. Depois, os seus bordos tornaram-se escarlates e deslizou no céu, como um redemoinho, espargindo chamas vermelhas de fogo. Essa luz refletia-se no solo, nas árvores, nas próprias faces das pessoas e nas roupas, tomando tonalidade brilhantes e diferentes cores. Animados três vezes por um movimento louco, o globo de fogo pareceu tremer, sacudir-se e precipitar-se em ziguezague sobre a multidão aterrorizada. Tudo durou uns dez minutos. Finalmente, o sol voltou em ziguezague para o seu lugar e ficou novamente tranquilo e brilhante. Muitas pessoas notaram que as suas roupas, ensopadas pela chuva, tinham secado subitamente. Tal fenômeno foi testemunhado por milhares de pessoas, até mesmo por outras que se encontravam a quilômetros do lugar das aparições. O relato foi publicado na imprensa por diversos jornalistas que para ali se deslocaram e que foram, também eles, testemunhas.' Este evento ficou conhecido como 'O Milagre do Sol'. Este foi intensamente estudado por José de Almeida Garrett, professor de Ciências Naturais da Universidade de Coimbra e um dos que presenciaram o episódio. Alguns estudiosos também afirmam que esta foi outra espécie de prova da existência do inferno.


Santuário de Fátima (à esquerda, a Capelinha das Aparições)

Basílica da Santíssima Trindade

Azinheira Grande (no local onde havia a azinheira em que se davam as aparições)

Basílica de Nossa Senhora do Rosário (ao fundo) e Monumento ao Sagrado Coração de Jesus (mais adiante)

Parte do Muro de Berlim (está em Fátima como prova do segundo segredo, o fim do comunismo)

Escultura do papa João Paulo II (em Fátima)

   Diante de toda esta descrição de eventos que remetem muito ao lado da fé em cada um, é interessante nos questionar: de onde vem esta concepção do inferno como apresentada por grande parte da cultura ocidental? Sou levado a crer fortemente que vem especialmente dos séculos XIII e XIV, e que se deve a uma das figuras mais importantes da Literatura Universal: Dante Alighieri. O ano de seu nascimento é incerto, mas, baseado em eventos descritos na própria Divina Comédia, a sua obra eterna (sem a menor discussão), deve ter nascido por volta de 1265, e a maioria dos estudiosos acredita que no mês de maio, na cidade de Florença, Itália. Um ano após, em 1266, teria nascido a sua 'amada imortal', Beatrice di Folco Portinari.


Dante Alighieri (1265?-1321)

Dante meets Beatrice at Ponte Santa Trinita, de Henry Holiday (1883)

   Com uma forma de apreço que transcende mais ao amor cortês, no mais autêntico cânone medieval, e tendo a visto poucas vezes em sua vida, a grande idealização que o poeta fez desta personagem é quase que como o sentido salvador para a sua existência. Duas das suas grande obras, a já citada Divina Comédia e um livro de poemas mais líricos chamado de La Vita Nuova foram altamente inspirados em Beatrice, que parece que fazia desaparecer todo o mal que pudesse ter existido na vida dele. Beatrice morreu com somente 24 anos, e foi casada com outro homem que não o poeta, mas algumas vezes aparece em visões, ou sonhos, de Dante e o leva à construção de versos, de palavras, que traduziam a sua vida em um sentido tão completo que encanta até hoje. E a vida do poeta foi tão intensa, marcada por conflitos políticos, dos quais participou muito ativamente, por este amor idealizado, por sofrimento com o exílio, com a questão da Itália dividida (ainda longe de ser unificada e tendo sido invadida por estrangeiros ainda durante o curso de sua vida), que o amadurecimento profundo e toda a inspiração que ele reuniu em sua vida o levaram a desenvolver a ideia da sua obra máxima, e obra das mais importantes para a língua humana e para a cultura ocidental, a já citada Comedia, que somente com Boccaccio, um pouco mais adiante, ganharia o título que foi imortalizado: Divina Comédia. Tendo sido escrita em italiano, tem para esta língua a mesma importância que Os Lusíadas, de Luís de Camões, tem para a língua portuguesa; na época em que foi publicada a obra de Dante, os trabalhos solenes, sérios, eram escritos em latim.


Imagem de uma das versões do Inferno, da Divina Comédia

Dante and Vergil in hell, de Eugène Delacroix (1822)
 
   E o poeta soube amadurecer toda a ideia de obras preliminares, quer fossem de poetas e prosadores eminentes, quer fossem de escribas modestos e anônimos; e estas talvez tenham constituído a fonte de que se utilizou Dante para chegar à concepção, que amadurecia nele, de um poema que, sob o signo da totalidade da vida humana, considerada nos seus aspectos transitórios e eternos, pudesse, à glorificação de Beatrice, unir a justificação e reabilitação de seu próprio destino, truncado pela vileza e crueldade de seus perseguidores. E, nisto tudo, com o Inferno sendo a obra ainda mais instigante das três partes e mais representativa de seu sofrimento, pode-se dizer que as passagens e cenas representadas com grande brilho pelo poeta são o claro na mente de toda a imaginação da cultura ocidental do escuro das profundezas do abismo. É muito incipiente aquele que não crê que haja esta imensa influência... Dante morreu em 1321, com 56 anos de idade, fora de Florença, sua cidade natal e muito adorada, mas para qual jamais voltou em vida a partir do dia em que seguiu para um longo e sofrido exílio. E gostaria de não mais citar o poeta e sua obra nesta postagem porque, obviamente, será motivo de pelo menos três postagens neste blog posteriormente.


Auguste Rodin (1840-1917)

   E a influência forte e ressonante da colossal obra máxima de Dante, aqui essencialmente representada pela primeira parte (o Inferno), se fez sentir em um dos maiores escultores franceses em todos os tempos: François-Auguste-René Rodin, ou, simplesmente, Auguste Rodin. Nascido em Paris, em 1840, é geralmente considerado um embrião da moderna escultura, embora em seus trabalhos não se perceba a rebeldia contra o passado; foi educado segundo conceitos tradicionais e buscou reconhecimento acadêmico em toda a sua vida. Muitas de suas obras foram muito criticadas ainda enquanto vivia porque, apesar da educação tradicional, iam de encontro a esta tradição acadêmica, em que os trabalhos em geral eram decorativos, estereotipados e altamente temáticos. Os seus trabalhos mais notáveis partiram de influências mitológicas e alegóricas, sendo o corpo humano modelado com realismo e havendo uma celebração ao caráter individual e físico. Rodin nunca deixou de ser sensível às críticas ao seu trabalho, mas sempre se negou a mudar as suas ideias e o seu estilo, e esculturas subsequentes foram recebendo o devido reconhecimento do governo e da comunidade artística. Sempre na companhia de grandes intelectuais e artistas de sua época, suas esculturas tiveram um declínio em popularidade após a sua morte, em 1917, mas logo após algumas décadas, o seu legado se solidificou, e hoje continua a ser um dos poucos escultores conhecidos fora da comunidade das artes visuais.


O Pensador

O Pensador 

O Beijo

   Embora seja mais famoso por obras como O Pensador e O Beijo, foi a sua colossal escultura Os Portões do Inferno (The Gates of Hell), encomendada pelo estado francês em 1880 (logo após o mesmo estado ter comprado A Idade de Bronze) na proposta de ser colocada como um portal do nunca erguido Museu de Artes Decorativas (no lugar onde hoje se situa o Musée d'Orsay), que consumiu toda a sua vida e é das obras mais importantes da história da escultura, ainda que tenha permanecido inacabada. A escultura apresenta cenas do Inferno, de Dante; o trabalho de Rodin contém enriquecimentos baseados na própria fantasia deste e em visões de As Flores do Mal, conjunto de poemas de 1857 do também francês Charles Baudelaire (nestes poemas, Baudelaire descreve o homem assombrado por paixões que tanto o deleita como o atormenta; o desejo não conhece limites, mas a satisfação permanece recusada, um antagonismo romântico que irá permear a obra de Rodin até o final do século XIX). Além disto, em Os Portões do Inferno, o escultor também acrescentou elementos da obra Metamorphoses, de Ovídio.


A Idade de Bronze

São João Batista

Batistério, em Florença, Itália

Os Portões do Paraíso, de Lorenzo Ghiberti

Painel Adão e Eva, de Os Portões do Paraíso

Painel Davi, de Os Portões do Paraíso

Painel Esaú e Jacó, de Os Portões do Paraíso 

Lorenzo Ghiberti (1378-1455)

   A exemplo do que fez na sua escultura de São João Batista, quando superdimensionou o personagem em repúdio às acusações de modelagem em A Idade de Bronze, nos Portões ele escolhe usar um grande número de pequenas imagens. A grande influência escultural inicial que recaiu sobre Rodin foram Os Portões do Paraíso, título dado pelo grande Michelangelo à obra de Lorenzo Ghiberti para os portões do Batistério em Florença, Itália. Como nesta obra, o francês procurava inicialmente criar algo como uma história sendo contada em diferentes placas dispostas organizadamente com linhas horizontais e uma grande linha vertical ao centro dos portões, ritmicamente arranjadas e com uma diferença nos focos de luz. Mas, posteriormente inspirado pelo teto da Capela Sistina de Michelangelo, Rodin simplificou este conceito; enquanto as figuras que povoam Os Portões do Inferno começam a emergir do fundo e ganham mais volume, foram abandonadas as barras horizontais entre as seções, e é como se cada cena individual estivesse agora flutuando num mar de fogo. Enquanto que no Inferno de Dante cada classe de pecador é aprisionada no seu anel e círculo específico, nas chamas dos portões de Rodin, estes compartimentos foram fundidos para baixo; no entanto, apesar deste grandioso fluxo, os protagonistas permanecem isolados no seu desespero, cada um deles impulsionado por sua paixão implacável. A estrutura categorizada medieval de Dante dá nexo a um drama mais universal da humanidade mortal, à deriva em um império de noite, condenada em ambos os lados da tumba; em vez de uma moral cristã, Rodin nos confronta com o dilema do homem moderno, para quem toda a orientação clara de valores se extraviou.


Os Portões do Inferno (The Gates of Hell)

Os Portões do Inferno (detalhe)

As Três Sombras (em Os Portões do Inferno)

Os Portões do Inferno (detalhe)

Ugolino e seus Filhos (em Os Portões do Inferno)

Ugolino e seus Filhos (em Os Portões do Inferno)

As Três Sombras e O Pensador (em Os Portões do Inferno)

Amor Fugaz (em Os Portões do Inferno)

Os Portões do Inferno (detalhe)

Paolo e Francesca (em Os Portões do Inferno)

Os Portões do Inferno (detalhe)

Paolo e Francesca

Eterna Primavera

   No alto da escultura, percebem-se representações menores de duas outras obras do artista: As Três Sombras (The Shades) e O Pensador (The Thinker). Esta última, também chamade de O Poeta, mais obviamente remete ao próprio Dante, olhando para baixo (sua obra), mas há estudiosos que vêem aspectos do Adão bíblico, do Prometheus mitológico ou mesmo do próprio Rodin. Outros reforçam a temática de intelectualidade nesta, salientando a representação física áspera do rosto e a tensão emocional emanada dela. Inicialmente, na parte esquerda do portão, existia uma pequena representação de O Beijo, posteriormente substituída por Paolo Malatesta e Francesca da Rimini, os amantes citados na obra de Dante que foram assassinados pelo marido ciumento de Francesca enquanto se beijavam; são, assim, representados como amantes condenados a estar para sempre presos um ao outro em um abraço, embora nunca para saciar a sua paixão. Ainda no portão à esquerda há uma representação de Ugolino e seus filhos (Ugolino and his children). Enquanto estas duas pequenas representações podem ser claramente distinguidas em ambos os portões, bem como na obra de Dante, o escultor criou um conjunto de aproximadamente duzentas figuras representando as almas condenadas no submundo, desejosas de escapar dos tormentos do inferno. É interessante notar que, no portão da direita, há outra representação de Paolo e Francesca, em uma pequena escultura chamada de Fugit Amor (Amor Fugaz), e Paolo tenta sustentar Francesca, que cai... Podem-se observar ainda as representações de Meditação (Meditation)Eterna Primavera (Eternal Springtime), e Eu Sou Bonita (I am Beautiful), entre outras.


Os Portões do Inferno (versão do Musée d'Orsay)

   A obra, em seu tamanho final (ainda que inacabado), atingiu dimensões de 7,5 x 4,0 metros. Embora o escultor tenha percebido por volta de 1887 que o Museu de Artes Decorativas jamais viesse a vingar, ele persistiu no trabalho desta escultura pelos seus aproximadamente 40 anos de vida após o início dos trabalhos. A obra Os Portões do Inferno pode ser considerada o seu projeto de vida, tendo registrado todos os diferentes estilos e assuntos que emergiram de suas ideias ao longo de sua vida artística. Foi somente em 1900, na grande retrospectiva do artista em Paris, Place d'Alma, que a escultura foi apresentada ao grande público, ainda como modelo em gesso (mas sem muitas das figuras projetadas na versão em bronze). Hoje, no Musée d'Orsay, existe uma versão em gesso, mas uma das versões cabais em bronze se encontra no Museu Rodin, também em Paris; outras das versões em bronze podem ser encontradas no Museu Rodin da Filadélfia, nos Estados Unidos da América, e no Museu Nacional de Arte Ocidental em Tokio, no Japão.


No Museu Rodin, em Paris, contemplando Os Portões do Inferno

   Com toda a influência que permeou a sua criação, e tendo o artista se ocupado dela por grande parte de sua vida, e nunca a tendo concluído como desejado, a importância desta obra para a escultura é imensurável. O deleite na contemplação de cada detalhe da escultura é tão grande que reforça o poder que tem a influência de um grande poeta que passou por este mundo há quase mil anos. Reforça-se, ainda, a importância e o papel mais sublime que tem a arte na vida de cada um de nós. Os Portões do Inferno é uma obra-prima inquestionável!