domingo, 26 de janeiro de 2014

Estudos em Ingmar Bergman - O Sétimo Selo

   O oitavo capítulo do livro do Apocalipse, na Bíblia, se inicia da seguinte forma:
   'O sétimo selo - Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve no céu um silêncio durante cerca de meia hora... Vi então os sete Anjos que estão diante de Deus: deram-lhe sete trombetas.'
   Segundo esta escritura, Deus possui em sua mão um livro selado com sete selos, e a abertura de cada um destes selos implica em um malefício sobre a humanidade, mas é a abertura do sétimo selo que leva efetivamente ao fim dos tempos. O filme de que tratarei nesta postagem, O Sétimo Selo, foi lançado em 1957, período em que ainda marcavam a vida dos habitantes europeus os traumas da Segunda Grande Guerra e da bomba atômica. As décadas de 50 e 60 encerram o período de maior temor pela derrocada de uma guerra nuclear que destruísse o mundo instantaneamente. Além disto, os traumas relacionados à grande mortandade e ao holocausto desencadeados na guerra não haviam sido esquecidos; muito pelo contrário, as pessoas pressentiam que tudo fora um presságio de que o homem seria o grande responsável pelo apocalipse último. É nesta atmosfera altamente pessimista que muito se desenvolveram as teorias e os grandes filósofos e escritores do existencialismo; lembremo-nos, por exemplo, do grande livro A Peste, do vencedor do Nobel de Literatura Albert Camus (1913-1960) - neste livro, uma cidade argelina é assolada pela peste bubônica, e isto serve como metáfora para os horrores relacionados à Segunda Guerra Mundial.

Apocalipse e Solidão
Albert Camus (1913-1960)
   O Sétimo Selo é um filme que, na carreira de Ingmar Bergman, ocupa um período intermediário. Em várias entrevistas relacionadas a esta época, o diretor descreve ter sido doutrinado rigidamente como uma criança na religião e moralidade repressiva da fé luterana de seu país, a Suécia; descreve o seu desejo de comunicação com Deus, mas não com Jesus; sua sensação de que 'o olho de Deus' o estava sempre observando de longe em congruência com o afastamento de seu pai eclesiástico; sua consciência do amor de sua mãe, mas que não era representado por muito contato com ela, e o pouco de emoção que ela expressava era para sustentar a fraqueza neurótica de seu pai; o sentido debilitante de inutilidade que se manteve ao longo de sua juventude e do início de sua maturidade; e sua experiência com o medo resultante do apego humano e os impulsos naturais relacionados a este, assim como um profundo medo da morte, que (segundo sua crença à época) somente poderia levar à punição eterna se houvesse má conduta como criatura carnal. Com este panorama de sua sensibilidade, Bergman afirma que usou o seu trabalho cinematográfico como um meio de buscar respostas tanto afetivas quanto intelectuais para todos estes problemas sérios em sua vida. Sua preocupação com questões religiosas com este filme data de um tempo em que ele estava amedrontado com relação à morte, com sua própria morte representando uma culminação irreversível de sua vida. Assim, ao completar a organização de O Sétimo Selo, Bergman deu um grande passo na sua busca pela emancipação dos horrores que sentia com relação à mortalidade.

Capa do filme
Ingmar Bergman (1918-2007)
   O Sétimo Selo foi filmado logo após o sucesso financeiro e de crítica do seu filme anterior, Sorrisos de Uma Noite de Amor (Smiles of a Summer Night, de 1955); este sucesso permitiu a Bergman produzir trabalhos de sua própria escolha com muito mais liberdade do que anteriormente. Esta liberdade fez com que ele desenvolvesse um filme com uma estrutura ambígua, que tem sido vista por muitos críticos como uma forma de amenizar adeptos às visões radicalmente opostas com relação à religiosidade que são confrontadas na narrativa. É digno de nota que a grandeza do filme aparece na autenticidade e na clareza das atitudes conflituosas que são representadas, além da grande beleza visual com que estas atitudes vão se articulando cena após cena.
   Resumidamente, o filme apresenta a seguinte narrativa: um cavaleiro desiludido, Antonius Block (Max von Sydow) e seu escudeiro niilista Jöns (Gunnar Björnstrand) retornam de uma das Cruzadas na época medieval e encontram a Suécia assolada pela peste. Na praia, logo após a chegada deles, Block encontra a morte (Bengt Ekerot), personificado como uma figura pálida, com uma manta preta assemelhando-se a um monge. Block, no meio de um jogo de xadrez que ele jogava sozinho, desafia a morte para uma partida, acreditando poder evitar sua morte enquanto o jogo continua. A morte aceita e eles iniciam uma nova partida. Block e Jöns se dirigem ao castelo do cavaleiro. Ao longo do caminho, eles passam por alguns artistas (atores itinerantes), quais sejam Jof (Nils Poppe), sua esposa Mia (Bibi Andersson), o filho deles Mikael e outro ator, Skat. Jof tem visões, mas Mia é cética. O cavaleiro e o escudeiro entram numa igreja onde um afresco da Dança da Morte (uma alegoria medieval que reúne imagens que personificam o conceito da universalidade da morte, ou seja, não importa quem você é em vida, sua posição social, seu poder econômico, a dança da morte reúne todos) está sendo pintado. Jöns desenha uma pequena figura representando ele mesmo. Block vai ao confessionário, onde se encontra com a morte disfarçada de padre, para quem ele admite que sua vida foi fútil e sem sentido, mas que deseja realizar um ato significativo. Ao revelar, para o padre, a estratégia no jogo de xadrez que iria salvar sua vida, Block descobre que o sacerdote, na verdade, é a morte, que promete se lembrar das táticas. Ao deixar a igreja, Block fala com uma jovem que foi condenada à fogueira por suposta congregação com o diabo. Pouco depois, Jöns procura por água numa vila abandonada e salva uma garota (Gunnel Lindblom) de ser violada por um homem que rouba de um cadáver. Ele reconhece este homem como sendo Raval (Bertil Anderberg), um teólogo que, dez anos atrás, convenceu Block a deixar sua esposa e se juntar à Cruzada em direção à Terra Santa. Jöns promete marcar Raval na face se ambos se encontrarem de novo, e a garota se une a Jöns. O trio caminha pela cidade, onde está havendo uma pequena performance da trupe de atores. Skat apresenta Jof e Mia ao público e, logo a seguir, é atraído por Lisa (Inga Gill), a esposa do ferreiro, para um lugar em que irão se encontrar. Eles fogem juntos. A performance de Jof e Mia é interrompida pela chegada de uma procissão de flagelantes.

Max von Sydow (1929-      )
Gunnar Björnstrad (1909-1986)
Bengt Ekerot (1920-1971)
Bibi Andersson (1935-     )
Gunnel Lindblom (1931-     )
Nils Poppe (1908-2000)
   Num bar, Jof cruza com Raval. Este força aquele a dançar sobre as mesas como um urso. Jöns aparece e, conforme havia prometido, corta a face de Raval. Block desfruta um piquenique com leite e morangos silvestres proporcionado por Mia. Block diz: 'Eu carregarei esta lembrança entre minhas mãos como se ela fosse uma tigela preenchida até a borda com leite fresco... E será um sinal adequado; será suficiente para mim.' Ele convida os atores para o seu castelo, onde eles estarão mais seguros da peste. Ao longo do caminho, eles cruzam com Skat e Lisa na floresta. Esta, insatisfeita com Skat, retorna para o seu marido. Após todos partirem, Skat sobe numa árvore pensando em passar a noite. A morte aparece e derruba a árvore, informando ao ator que sua hora chegara. Eles cruzam com a jovem condenada novamente pelo caminho. Block pede à jovem novamente para invocar o satanás para que ele possa questioná-lo sobre Deus. A jovem alega já o ter feito, mas Block não consegue vê-lo; somente enxerga o terror da jovem. Ele dá a ela ervas para lhe tirar a dor. Raval reaparece. Morrendo em decorrência da peste, ele suplica por água. A garota tenta dar-lhe um pouco, mas é interrompida por Jöns. Jof diz a Mia que ele pode enxergar o cavaleiro jogando xadrez com a morte, e decide fugir com sua família enquanto a morte está distraída. Após ouvir a declaração da morte ('Ninguém escapa de mim'), Block derruba as peças do jogo, distraindo a morte enquanto a família foge. A morte reposiciona as peças no tabuleiro e então vence a partida na próxima jogada. Ela avisa que, quando se encontrarem de novo, o tempo de Block estará terminado. Antes de partir, a morte pergunta se Block atingiu seu objetivo de realizar algo significativo - o cavaleiro responde que sim. O cavaleiro reencontra sua mulher solitária no castelo (todos os serventes fugiram). O grupo compartilha uma 'última ceia' antes de a morte vir até eles. Block reza a Deus: 'tenha piedade de nós, pois somos pequenos, amedrontados e ignorantes'. Enquanto isto, a família de atores está fora do castelo e surge uma tempestade, que Jof  interpreta como sendo 'o anjo da morte e ele é bem grande'. Na manhã seguinte, Jof, tendo outra visão, vê o cavaleiro e seus seguidores sendo levados embora sobre as montanhas em uma dança da morte solene.
   Este filme de Ingmar Bergman tem paralelo em um outro grande filme seu: Morangos Silvestres (Wild Strawberries, também de 1957), filme este de que tratarei em outra postagem. Ambos contam uma jornada final de seu personagem central; é uma viagem de um lugar para outro durante um longo dia. De fato, o que parece ser linear, na realidade, é parte de uma jornada mais complicada que, em essência, começa em casa, vai até muito longe, e finalmente retorna para onde tudo começou - é este último estágio que visualizamos. Para Bergman, isto representa uma incumbência central da vida adulta: retornar ao passado e, de alguma forma, recuperar algo essencial para a vida que foi perdido - é neste retorno ao começo que encontramos nossa segunda chance. Para o cavaleiro Block esta segunda chance seria restaurar seu casamento, mas seu tempo chegou ao fim, e ele pode apenas se reunir à sua esposa para esperar o final juntos. Mas, ele pode salvar outra pessoa (o artista Jof, além de sua esposa, Mia) e, assim, substituir sua própria salvação pela de outro, um cumprimento parcial do seu projeto essencial de retorno e reapropriação. Entrelaçada nestas estórias de partida e retorno está o tema de duas mortes - a primeira é a do espírito, ocorrendo após o abandono e a destruição do que é transcendental, e é a mais terrível; a segunda, obviamente, é a do corpo. Block procura em Deus o tipo de relação que ele poderia ter tido com Karin, sua esposa, e é o silêncio de Deus que ele toma como abandono e traição. O próprio nome do cavaleiro, Block, remete a uma espécie de fortaleza, de alguém impenetrável, uma barreira a invasores. É apropriado, por exemplo, que o xadrez apareça no filme, pois é um jogo sobre a tentativa de assegurar que as barreiras de um dos jogadores não sejam destruídas pelo outro jogador, o invasor. Mas, dentro deste reduto que impede a entrada de outros, algo de vida sobrevive; é esta profunda consciência de que algo está faltando que impele Block a atrasar o papel da morte até que ele tenha alcançado Deus e ouvido a sua voz.




   O Sétimo Selo é extremamente rico em imagens memoráveis e excepcionais: a morte em si mesma, o jogo de xadrez, Mia e Mikael, a visão da Virgem, peregrinos flagelantes, a ceia de morangos silvestres e leite, a bruxa sendo queimada, a dança da morte ao final, o semblante radiante de Jof. O poder do filme talvez esteja em sua memorabilidade, na sua capacidade de permanecer em nossa imaginação e não mais pertencer à estória do filme em si. O vazio da morte permanece lado a lado com a serenidade de uma refeição ao entardecer com morangos silvestres. Tudo persiste como imagens de realidades sempre possíveis para qualquer um. Porém, o filme também tem um caráter discursivo que convida tanto à reflexão como à análise; o filme é emoldurado por duas formas litúrgicas cristãs - o Requiem (do início) e a Glória (do final). O primeiro é uma espécie de missa ou oração dedicada aos mortos; a segunda é uma forma de louvor a Deus por ser um criador misericordioso. Esta mudança de ameaça de iminente julgamento para a celebração da glória de Deus e do mundo que Ele nos deu já é englobada na missa em si, que se inicia e termina com um apelo a Cristo por misericórdia e paz, e que as almas dos mortos sejam entregues e passem da morte para a vida que Ele assim prometera. Esta estrutura de renascimento, de uma salvação que vai de uma morte terrena para uma vida espiritual, é ecoada nas várias referências do filme ao Apocalipse de São João, que em si termina num casamento sagrado na nova Jerusalém. Tudo isto sugere que a narrativa de O Sétimo Selo pretende traçar este progresso e mostrar em que a misericórdia de Deus realmente consiste.
   Mas citei anteriormente sobre a ambiguidade do filme; esta nos é apresentada já nas cenas contrastantes do início do filme. Após o otimismo inicial da música pomposa, o coral (essencialmente feminino) entoa brevemente um ritmo firme, mas sinistro. Os sons emanam de um grupo de nuvens clareadas pelo sol envolto por nuvens escuras que parecem estar se fechando sobre o primeiro grupo. O pássaro que paira em silêncio com suas asas estendidas é, no entanto, uma imagem que conforta, e também o é a voz do homem que declama a passagem do livro do Apocalipse. Nunca nos é dito quem é que declama este trecho da escritura, ou de que local a voz é emanada. Podemos supor, entretanto, que talvez se trate de parte de um sermão que um pregador pode estar apresentando como mensagem de Deus. De igual importância é o fato de que não podemos saber de que pássaro se trata e o que a passagem da música de abertura significa; será que essa música inicial tem um sentido teatral, como a chamar a atenção do público para o início do espetáculo (sabemos que Bergman tem grande inspiração e representação teatral)? Será o presságio de um evento cósmico como a grande explosão que anuncia o milagre de Deus na origem do mundo, como no oratório A Criação, de Joseph Haydn? Ou será que os acordes estridentes são uma declaração da terrível e perniciosa condição humana retratada no ambiente medieval, mas também presente nos tempos modernos? Da mesma forma, o pássaro pode ser visto tanto como um predador como uma prova do amor divino eterno. O fato de o pássaro se apresentar planando no alto, com as asas abertas, e não atacando nenhuma presa ou se dirigindo para nenhum lugar, nos sugere a pomba mitológica que se diz descer dos céus em compaixão a este mundo de pecado. Isto, por sua vez, delineia a aparição da morte pouco depois, quando ela abre os braços como se quisesse abraçar dentro de seu manto aberto o cavaleiro que perdeu o apetite pela vida; tomando-lhe, a morte poderia ser vista como um ato de amor ou misericórdia.




   A diferença, portanto, entre as duas formas de interpretação nesta atmosfera ambígua é tão grande quanto a diferença entre o preto e o branco, que são as cores de captação do filme. Bergman dizia que os filmes em preto e branco forçam a imaginação da audiência a participar intensivamente na comunicação com o diretor e suas imagens, o que define a natureza da arte do cinema. Ao mesmo tempo, pode-se entender que o preto e o branco estão em máximo contraste um com o outro, e são, portanto, mais dramaticamente confrontados do que qualquer outra combinação. Daí, por exemplo, o rosto muito branco da morte, que se veste toda de preto - aliás, a morte é o único personagem no filme que é puramente mítico, e não de todo realista. Bergman dizia que tinha em mente a face branca dos palhaços num circo quando imaginou esta caracterização para a morte. Ao contrário da imagem da morte em outros de seus filmes, em O Sétimo Selo, a morte não é inteiramente assustadora; pelo contrário, ela é frequentemente divertida e perspicaz. Por exemplo, ela aceita a proposta do cavaleiro para a partida de xadrez com a responsabilidade de alguém que realmente gosta do jogo e se orgulha de ser um mestre nele. Quando, ao acaso, a morte tem que jogar com as pretas, brinca-se com o fato de que isto é bastante adequado para alguém na posição dela. Mas este aspecto não tão assustador da morte não diminui a sua implacável devoção à sua missão. Quando a morte trapaceia e se disfarça de padre ao ouvir a confissão do cavaleiro na igreja, e descobre a tática que este usará para vencer aquela na partida de xadrez, ela está simplesmente executando o seu trabalho como alguém que pertence ao lado sombrio, a despeito de sua brancura complementar em sua apresentação humanóide. Apresentando o tempo todo uma caracterização ambígua da morte, Bergman manteve a fidelidade dela em dizer sempre a verdade, o que o diretor considerava fundamental numa vida digna. Quando o cavaleiro pergunta se a morte irá divulgar seus segredos no final de tudo, ela responde que não tem nenhum segredo, que não tem nada a dizer. E, obviamente, ela não tem, já que é meramente o arauto do nosso 'nada' que está por vir, e isto era o que Bergman temia à época. Mesmo na penúltima cena, quando a morte consegue reunir todos no castelo do cavaleiro indiscriminadamente, como aconteceria com a peste, ela não se faz ver ou ouvir. Em estar ao mesmo tempo presente e ausente neste sentido, ela emula o silêncio que é a doença espiritual, a doença até a morte, de que o cavaleiro tem sofrido desde o início e que o diretor tenta superar ao fielmente retratar isto.
   Na iconologia de Bergman, a morte não é o mesmo que o demônio. Tyan, a garota acusada de bruxaria, é queimada porque se acredita ter conspirado com o demônio. Ela afirma para si mesma e para o cavaleiro que os soldados não lhe causarão mal porque o demônio habita nela. Ainda, afirma que o cavaleiro pode encontrar o diabo olhando nos olhos dela. Em uma aproximação da câmera no rosto dela, nem o espectador e nem o cavaleiro percebem qualquer coisa que lembre o demônio. O que vemos, em vez disto, numa cena subsequente, é a morte serenamente fingindo ser um monge enquanto aguardo o seu prêmio. Quando a imolação começa, há um semblante de terror que marca a compreensão de Tyan de que o demônio a abandonou à morte, que é dolorosa, a despeito da poção que o cavaleiro coloca em sua boca no último instante.





   O cunho filosófico do filme de Bergman é muito contundente; no filme, o diretor tenta combinar um racionalismo rigoroso com uma fé perene na santidade da raça humana. Na estrutura dialética de O Sétimo Selo, pode-se identificar prontamente a mente e o comportamento de Jöns, o escudeiro, com o racionalismo, e o cavaleiro com a fé perene. Como em muitas obras em que se apresentam dois companheiros em jornada, como em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, as observações perspicazes e desilusões do escudeiro emanam de uma perspectiva racional que é verdadeira para a realidade e é inabalável em sua profissão de simples honestidade; mas também, decorrem da simpatia que o escudeiro sente em relação àqueles que são vítimas de terríveis circunstâncias em que são forçadas a viver. Nada que o cavaleiro faz é de perto comparável aos atos do escudeiro, exceto na única situação em que ele, maliciosamente, distrai a morte derrubando as peças no tabuleiro de xadrez e, assim, permitindo à 'família sagrada' fugir pela floresta; fazendo isto, ele cumpre sua missão como um cavaleiro de fé. No começo do filme, vemos o cavaleiro vestido com uma túnica que contém uma grande cruz, que identifica a causa para a qual ele se entregou. Suas orações e tudo o que ele diz são expressões verbais da religião em que acredita. Neste mundo de sofrimento e tristeza, cujas delícias corporais o escudeiro ainda deseja aproveitar, a despeito do reconhecimento de toda a sua ilusão, o cavaleiro procura somente uma resposta para o quebra-cabeça do silêncio de Deus. Ele deseja um sinal da existência de Deus e do seu amor escondido mas contínuo como promulgado pela visão ortodoxa do Cristianismo. Mas, por esta atitude, e pelo fato de o cavaleiro morrer sem receber qualquer resposta, como pode seu trabalho corroborar qualquer noção sobre a alegada santidade pela raça humana? Interessantemente, num dos momentos de maior comunhão com a natureza, quando o cavaleiro se apresenta numa das grandes situações que poderiam representar a resposta aos seus questionamentos religiosos, ele não vislumbra a possibilidade de que este momento, sozinho, poderia representar um sinal da presença amorosa de Deus no mundo; pode-se argumentar que esta natureza do sagrado se revela na cena em que Jöns e o cavaleiro participam de um piquenique com leite e morangos silvestres oferecidos por Mia quando eles em conjunto experimentam a beleza do por do sol de verão numa colina num momento de grande paz. Jof canta uma canção e Mia conforta o cavaleiro em seu desapego solitário dos prazeres rudimentares da existência comum. Eles todos se tornaram, naquele momento, uma comunidade estendida cuja aceitação um do outro os transforma numa espécie de congregação secular, como meros seres humanos e sem a interposição da supervisão clerical ou tradição teológica. É um momento de epifania que o cavaleiro promete sempre estimar. Ainda assim, os pressupostos doutrinários do cavaleiro maculam a bondade pura da ocasião, que Mia decreta espontaneamente e sem qualquer convicção formal.
   Quando O Sétimo Selo foi lançado, na segunda metade dos anos 1950s, os críticos frequentemente se referiam a ele como uma expressão do existencialismo moderno. Mas, nem este filme e nem qualquer outro dos que se seguiram dirigidos por Bergman podem ser explicados em termos das versões religiosa ou ateística do existencialismo. A visão religiosa, como representada por Gabriel Marcel (1889-1973) e Martin Buber (1878-1965), e com origem até certo ponto nos escritos de Sören Kierkegaard (1813-1855), pressupõe a veracidade da fé judaico-cristã em um Ser Supremo, infinitamente amoroso. A abordagem ateística, como nos escritos de Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Martin Heidegger (1889-1976), sustenta uma ontologia totalmente diferente e relacionada a pensadores como Ludwig Feuerbach (1804-1872) e Friedrich Nietzsche (1844-1900), estes que tratam todas as referências ao 'sagrado' como projeções da imaginação humana e do desejo de realização. O que Bergman incorpora na filosofização visual e literária em O Sétimo Selo não é redutível a nenhuma das duas abordagens. Os dogmas sobrenaturais de sua juventude tinham criado nele sentimentos de culpa por fazer e desejar tudo o que ele, como outras pessoas, naturalmente desejavam ou com o que se preocupavam. Para ele, estes dogmas o preencheram não somente de auto-aversão mas também de ira e agressividade contra os seus semelhantes humanos. O seu medo da morte, como concluíra à época do filme, era um medo de punição ainda maior que ele poderia sofrer após ter morrido. Em contraste a este sentimento patológico, a situação de 'não-existência' como o término de ter vivido o deixa tranquilamente contente. É, para ele, como um alívio. Em sendo assim, uma vez que se percebe que a preocupação com a existência ou a não existência de Deus é patológica, ele diz, ser-se-á capaz de enxergar que todas as pessoas têm uma espécie de santidade dentro delas. Enquanto enfatizando que ninguém sabe a sua verdadeira origem, Bergman afirma que esta origem vem da natureza humana em si - 'Minha sensação de que Deus não existe não é uma sensação apavorante; é uma sensação de segurança. Esta é a Terra, nós estamos aqui, e a santidade que existe - porque ela realmente existe - está dentro de nós. É uma criação de gerações e mais gerações de esperança, medo, desejo, mentes criativas, orações - que ainda existem, em mim, e eu estou feliz por tê-los em mim... Eu, portanto, tento ser tão bom quanto possível... ser um humano na terra suja e sob o céu vazio. Este é meu objetivo.' 
Gabriel Marcel (1889-1973)
Martin Buber (1878-1965)
Sören Kierkegaard (1813-1855)
Jean-Paul Sartre (1905-1980)
Martin Heidegger (1889-1976)
Ludwig Feuerbach (1804-1872)
Friedrich Nietzsche (1844-1900)
   Em termos de seu desenvolvimento como um artista visual e literário, manifesta-se a substância intelectual dos filmes que se inicia com O Sétimo Selo e segue por Através de um Espelho (Through a Glass Darkly), Luz de Inverno (Winter Light) e O Silêncio (The Silence), bem como alguns filmes subsequentes que pressupõem estes pensamentos, mesmo que possam não se concentrar neles. Ao longo de meados dos anos 1980s, Bergman alterou alguns dos seus pontos de vista, mas seguiu uma crença que poderia ser melhor encaixada no agnosticismo. Embora eu não compartilhe de sua crença maior ao final da vida, o que é muito interessante de se notar é que a grandeza de seu trabalho foi permitir grandes e profundas discussões acerca dos questionamentos da vida de cada um de nós, com formas brilhantes e autênticas, e que muitas vezes trouxeram respostas para o próprio diretor, e são, indiscutivelmente, filmes espetaculares, porque absorvem o espectador em suas próprias indagações, além de que oferecem uma saída e várias respostas essenciais para a existência. Ao colocar na película de forma perfeita grandes angústias de sua alma, Bergman prova que as grandes obras de arte não são aquelas que servem a um propósito exterior, mas as que surgem para atender a uma necessidade do próprio artista; como num livro, em que o autor escreve não pensando em vender, mas pensando que aquela estória precisa ser contada de alguma forma, porque há uma inquietação no seu espírito que necessita ser passada para o papel. A mesma coisa acontece, no meu caso, com relação ao grande Albert Camus; não compartilho de sua crença, mas a sua obra alimenta o espírito de qualquer pessoa, e seus escritos são de um poder de absorção e apresentam uma angústia da alma que não encontra outros paralelos, sendo magistrais e muito tocantes, verdadeiras obras primas.
   Então, poderíamos reunir alguns temas apresentados no filme, ainda que sempre haja a referência ambígua a eles. Por exemplo, um dos temas seria o silêncio de Deus; a misericórdia de Deus e a transformação da morte em vida é o que Antonius Block procura, mas para este, Deus é silencioso e ausente; ele não pode ser visto e nem fala. As pessoas o imaginam, mas isto não é a mesma coisa de ele realmente existir. As pessoas o temem, por isto o imaginam. Ao longo do filme, percebemos que talvez ele não aceite qualquer posição intermediária entre a pura fé e o conhecimento absoluto - Block vive entre estas posições, repelida por uma e desesperada pela outra. Um mundo em que estas são as únicas alternativas possíveis é, certamente, inumano e inabitável (ou seja, ímpio); então, Block persegue suas respostas, jogando xadrez para ganhar mais tempo e encontrá-las. Estas respostas são dadas a ele? Sim, embora ele talvez nunca realmente acredite nelas. Estas repostas acontecem em duas formas, a negativa (quando ele não encontra o diabo nos olhos da garota que está para ser queimada viva acusada de bruxaria, ela que tinha uma fé cega e pura na existência do diabo, e quando a morte o diz que não tem nada a dizer, exprimindo o que existe após a morte - nada; mas, o silêncio e o nada após a morte não é o silêncio de Deus, e esta é a primeira, negativa, resposta de Block) e a positiva (ora, quando a garota está para ser queimada viva, o conforto que Block dedica a ela, libertando-a um pouco da dor e do terror, já que lhe dá veneno, é tudo o que ela tem, embora não seja muito; no piquenique em que está com seu escudeiro e com Mia e Jof, ele está, naquele momento, contente, e tudo o mais não parece importante. Ao ver Mia e Mikael, ele é absorvido pela beleza deles e reconhece o amor e a afeição que abençoam o casamento de Jof e Mia - sua única ação significativa é salvar-lhes a vida. Apesar deste momento, ele parece não ter achado a paz que procura). De fato, Deus e o Diabo estão em todo lugar e de forma tão real quanto as outras pessoas. O Diabo é a maldade presente no sofrimento e tortura de Tyan, o mal no roubo e na luxúria por violação do ex-padre Raval, a humilhação dedicada a Jof na taberna, a vergonha e o desespero sentido pelo ferreiro Plog quando é traído, a solidão de Block; Deus está na proteção dedicada de Jöns a Jof e à garota, no alívio dado a Tyan, na alegria e no amor da família de Jof e Mia, no compartilhamento dos morangos silvestres, no ato significativo do cavaleiro, até mesmo na calma de Karin no final. Estas são as únicas respostas que podem ser encontradas, as únicas evidências de Deus ou do divino que nos podem ser dadas. Outro tema é o da imanência de Deus; no filme, de uma forma mais profunda, Bergman apresenta Deus de forma imanente e idêntico ao espírito humano. Isto não é uma questão de religião institucional e nem de doutrina, mas de verdade inerente em ambos. Block quer que Deus o toque através dos sentidos daquele, mas não percebe que isto aconteceu. Como uma interpretação e posição teológica da natureza de Deus, tal imanentismo não está em desacordo com a visão de Jöns de que Deus é uma imagem projetada por humanos para permitir que eles vivam tementes. Como figuras de pensamento, Deus, o Diabo e Jesus são, na verdade, representações de verdades humanas e um tipo de espelho em que podemos nos ver e enxergar o que mais precisamos saber através de suas imagens e narrativas. Religião, neste sentido, torna-se arte. E é através deste ponto de vista, da arte, que as verdades da religião e da vida são transmitidas no filme. Em O Sétimo Selo, esta representação do real em gravuras e palavras é uma forma primária de conhecimento. Entretanto, é também necessário que estas imagens não mal interpretem a realidade em que se fundamentam. Para Bergman, esta é uma questão de ter imagens mais completas e reconhecer quais representações são primárias; assim, Cristo aparece três vezes no filme como uma estátua de madeira (na igreja, entre os penitentes flagelantes e no castelo do cavaleiro) - todas são representações da paixão e do sofrimento humano. Talvez sejam estas imagens e o eterno suplício a Deus que mantêm Block procurando nos mesmos lugares; na sua busca, ele está imitando Cristo na cruz, sozinho, esperando por algum resposta transcendente - mas, ao ver o abandono e o sofrimento de Cristo como aqueles das pessoas, também vemos que a resposta de que cada um deles necessita é a ajuda e o conforto de uma outra pessoa. Após a cruz, vem a ternura de Maria e as três mulheres na tumba, não uma voz dos céus. Vendo Cristo na cruz sozinho, separado de outras imagens, somos levados a perceber que a falha representada por tal figura em dor e sofrimento não é de Deus, mas de nós mesmos. Em tais situações, respondemos aos outros de acordo com suas necessidades, não conforme nossos desejos, e damos gratuitamente o que temos - somos tocados e compartilhamos alguma coisa em comunhão com outras pessoas. Isto ocorre no entardecer quando do compartilhamento dos morangos silvestres e do leite (simbolismo para o sangue e corpo de Cristo), como já exposto, e é também o que está simbolizado pela visão que Jof tem de Maria e do menino Jesus, tornada imanente em Jof, Mia e Mikael; eles são a verdadeira sagrada família e têm toda a divindade que Maria e Jesus têm. É esta graça - que é tanto a generosidade da natureza como do coração humano, bem como a sorte de encontrar ambos - que a Glória final celebra. Um último grande tema é o do julgamento final; O Sétimo Selo é um filme moral, e suas figuras servem como exemplos dos tipos e possibilidades humanos. É uma estória sobre o que acontece a pessoas do tipo de Block quando elas necessitam de conhecimento, não de fé e suposições, e também sobre como por causa disto elas se tornam, em última instância, afastadas de Deus, mesmo que Ele esteja em todo lugar, não como uma questão de fé, mas como um objeto de uma diferente forma de observação. O fundamento do filme é ter Block não como um homem que muda, mas em tê-lo sempre o mesmo, intransigente em sua demanda, e, portanto, condenado à sua vida vazia, preenchida com medo e desgosto, e a uma morte impiedosa. Mas o medo e o desgosto está presente em todo lugar ao redor do cavaleiro no filme; este medo se instala logo no início do filme, que é o início do julgamento da humanidade diante de Deus. Mas qual a punição ou recompensa para os tipos do filme? Eles já as tiveram; o que vemos no fim do filme não é a morte levando suas vítimas para outra vida no Paraíso ou no Inferno, mas simplesmente os leva para seu próprio mundo escuro da não-existência. A morte verdadeiramente não tem segredos; sua paz é aquela do esquecimento. O único lugar de luz (e de irradiação espiritual) é aquele associado com Jof e Mia, e este é nesta vida. Mas, no final, a vida escapa da morte, pois ao salvar Jof e sua família da morte, a distraindo e se sacrificando, Block salva a vida em si, e a vida irá sempre escapar da morte, pois é algo sempre possível nela mesma.

Alegoria à 'Dança da Morte'
   O fato é que, após assistir a esta obra prima, minha visão da arte nunca mais foi a mesma. O grande poder de filmes como este é o de absorver a atenção e gerar grandes e prolíficos frutos por nos fazer cada vez mais desejosos de tocantes e consistentes expressões artísticas. O brilhantismo da fotografia em preto e branco, o simbolismo de cada personagem como referência para cada aspecto da alma humana, a compreensão das angústias da solidão e discussões importantes acerca do papel da morte e do papel da fé em nossas vidas, fazem de O Sétimo Selo um filme eterno e distante de muitos outros grandes filmes. Muito importante para reflexões nas vidas de todos nós. Apesar de todo essa explosão de gratidão com relação ao filme por todos estes motivos, o poder maior dele é compreender que, para Bergman, a redenção está, indiscutivelmente, na ARTE. Ora, a conclusão cabal em que a morte leva grande parte dos personagens mas não consegue levar os ARTISTAS, que sobrevivem, é uma prova indiscutível de que a ARTE suplanta toda e qualquer discussão acerca da existência, como que expressando que a ARTE é a verdadeira eternidade, e, ao se colocar Jof, Mia e Mikael como a sagrada família em si, outra inferência é a de que a ARTE talvez seja uma das coisas verdadeiramente mais sagradas na vida de todos nós. Uma ótima semana a todos!!!

domingo, 19 de janeiro de 2014

Estudos em Ingmar Bergman - Monika e o Desejo

   Cada vez mais somos expostos a influências e inspirações que nos absorvem por todos os lados. Ora se pretende seguir o desejo e a emoção com a maior intensidade possível, ora pesa a razão e as convicções sociais como freio para a alma humana. A vida toda de cada um de nós parece ser guiada por tensões entre as várias influências e inspirações que se colocam diante de nossa vista ou do nosso conhecimento; parece que a existência do homem é definida, na verdade, pela tensão e o equilíbrio entre as emoções e a razão. O desejo supremo é inconsequente, alçando a alma humana para o desconhecido, mas também para o infinito; a razão completa parece trazer o espírito para um ponto de calmaria, de segurança, como uma espécie de conformismo. O interessante, entretanto, é que a essência de toda a existência humana é o eterno conflito entre estes dois polos - a maior dificuldade da vida é encontrar o equilíbrio entre ambos.
   Uma das figuras de maior destaque no mundo da Literatura do século XX foi Thomas Mann (1875-1955). Ele é famoso tanto por suas obras de ficção como por seu ensaios críticos. Nasceu em Lubeck, na Alemanha, no meio de uma família mercante distinta, mas com uma 'veia' literária; o seu irmão mais velho, Heinrich, também acabou se tornando um romancista e dramaturgo famoso. Mann desenvolveu um forte interesse pelos filósofos alemães, especialmente Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche, e as teorias destes influenciaram profundamente seus trabalhos literários. A ficção de Mann é caracterizada pelo exame filosófico sutil das ideias e dos personagens apresentados, resultando em uma voz narrativa individual e frequentemente irônica; suas estórias frequentemente terminam de forma trágica. O tema do conflito entre a arte e a vida aparece ao longo de todo o trabalho do autor; Morte em Veneza (1912) é o ápice deste tema. 

Thomas Mann (1875-1955)
   Morte em Veneza não é representativo somente das questões de interesse do corpo de trabalho do autor, mas também reflete as ideias vitais mais importantes em discussão no mundo da literatura da época em que foi escrito. Na virada do século XIX para o século XX, muitos escritores europeus expressaram uma consciência gritante da decadência cultural e pessoal, e o declínio moral e social foi tema central de alguns romances importantes, como por exemplo O Retrato de Dorian Gray (1891), de Oscar Wilde. Além disto, estes trabalhos também expressavam como pontos de discussão questões acerca do homoerotismo; como Morte em Veneza, O Retrato de Dorian Gray usa um personagem fictício para servir de máscara para a homossexualidade do autor. Independente dos grandes temas tratados no livro Morte em Veneza, este é amplamente inspirado em eventos reais na vida do autor. Mann esteve numa ilha próxima a Veneza em 1905 durante um surto de cólera, e ele mais tarde viajou para a cidade, em maio de 1911, devido a uma exaustão que resultou numa dificuldade criativa literária, e ele sentiu que era necessário escapar, fugir de seu ambiente de morada; esta premissa é a mesma que ocorre com o personagem principal do livro, Gustav von Aschenbach. Mann leu em maio de 1911 o obituário do compositor alemão Gustav Mahler, que havia falecido aos 50 anos; as feições do personagem principal do livro foram inspiradas nas deste compositor. Como o personagem, Mann também era homossexual; embora ele fosse casado e tivesse seis filhos, sua esposa relatou que ela casou com ele somente para constituir uma família, mas a publicação de diários do autor em anos mais recentes tem trazido à tona suas várias relações homossexuais. Mais ainda, em 1965, veio ao conhecimento do mundo que a estória era muito mais baseada em fatos do que o previamente suspeitado: um barão polonês de nome Wladyslaw Moes identificou-se a si mesmo como o garoto que Mann apresenta no livro como Tadzio. A descrição das vestes deste personagem, das feições, do amigo turbulento de nome Jasio (no livro ecoado como Jashu), todas são inspiradas neste barão polonês, que esteve realmente em Veneza com a família. Moes até mesmo se lembra de ter visto um homem mais velho o observando extasiadamente no elevador do hotel; obviamente, Moes esperou a morte do autor para poder publicar a sua história.

Capa do livro 'Morte em Veneza'

Wladyslaw Moes, à esquerda, o barão polonês que inspirou Tadzio, vivido pelo ator sueco Björn Andrésen, neste mesmo papel no filme homônimo de 1971, à direita.
   Em 1929, Mann ganhou o Nobel de Literatura. Pouco depois, em 1933, fugiu da nova Alemanha Nazista para a Suíça. Em 1938, mudou-se para os Estados Unidos, tendo adquirido cidadania americana em 1944; entretanto, confuso com o McCartismo e com saudade da cultura europeia, mudou-se de volta para a Suíça no mesmo ano. Morreu onze anos depois.
   No livro, resumidamente temos o seguinte: Gustav von Aschenbach é um escritor alemão mais velho  que é o modelo de dignidade solene e de auto-disciplina exigente. Determinadamente 'cerebral' e compelido ao dever, ele acredita que a verdadeira arte é produzida somente como 'ultraje desafiador' às paixões corruptoras e à fraqueza física. Quando Aschenbach sente a necessidade de viajar, ele diz para si mesmo que poderá encontrar uma inspiração artística através da mudança de cena. Ele viaja para Veneza como primeira indulgência que se permitiu em anos; isto assinala o início de seu declínio. Ele permite que a atmosfera lânguida e as gôndolas que balançam suavemente no lugar o acalmem em um estado sem defesa. Em seu hotel, ele nota um garoto polonês de 14 anos extremamente bonito de nome Tadzio, que está viajando pela cidade com sua mãe, irmãs e uma governanta. No princípio, o interesse de Aschenbach no garoto é puramente estético, ou pelo menos é isto que ele diz para si mesmo. Entretanto, ele logo se apaixona profunda e obsessivamente pelo garoto, embora os dois nunca tenham tido contato direto. Aschenbach passa os dias observando Tadzio brincar na praia, até mesmo seguindo sua família pelas ruas de Veneza. A cólera ataca a cidade, e embora as autoridades tentem esconder isto dos turistas, Aschenbach logo descobre a verdade sobre a epidemia letal. Apesar disto, ele não suporta deixar a cidade e Tadzio, e permanece em Veneza. Ele se torna cada vez mais ousado em sua perseguição ao garoto, gradualmente se tornando mais e mais depreciado, até que finalmente morre de cólera, degradado, um escravo de suas paixões, despido de sua dignidade.

Cartaz do filme 'Morte em Veneza', baseado no livro, de 1971
   O que é mais interessante em todo o livro é, obviamente, o objeto de que trata. Morte em Veneza é uma estória sobre o artista e a natureza da arte. No começo do romance, Gustav von Aschenbach, enquanto possuindo uma sensualidade latente, existe como um homem que sempre teve suas paixões em xeque, nunca permitindo que elas se expressassem em sua vida e nem em sua arte. Como a cultura burguesa europeia da virada do século que ele representa, Aschenbach é, em termos Freudianos, 'reprimido'; vivia, assim, um estado de desequilíbrio tal que, acreditava-se, não poderia permanecer estável e nem poderia produzir a verdadeira e inspirada arte. Entretanto, tendo mantido suas paixões sob grande controle por tanto tempo, uma vez que ele começa a baixar sua guarda contra elas, as paixões ressurgem com poder redobrado e toma conta de sua vida. Uma vez que Aschenbach admite beleza sensual em sua vida, representada pelo garoto Tadzio, todos os seus padrões morais se quebram, e ele se torna um escravo da beleza, um escravo do desejo; ele se torna depreciado. Assim, Aschenbach se desloca totalmente de um extremo da arte para o outro, da 'cerebral' para a 'física', da forma pura para a pura emoção. O romance de Mann alerta para os perigos - na verdade, os perigos mortais - existentes em cada um dos extremos.


   Morte em Veneza é escrito de acordo com um método que Mann chamou de 'mitológico mais psicológico'. Ambos os elementos desempenham papeis importantes no declínio de Aschenbach. Tadzio é descrito em termos míticos e comparado a uma escultura grega, ao deus do amor, a Jacinto e Narciso, ao personagem Fedro, de Platão. O passeio de Aschenbach pela lagoa em Veneza é apresentada em termos que sugerem uma jornada lendária pelo rio Estige dentro do submundo. Figuras de cabelo vermelho consistentemente reaparecem para Aschenbach, sugerindo demônios. Todas essas referências mitológicas servem para universalizar os personagens e suas experiências na estória. Elementos psicológicos também figuram de forma proeminente no romance: no início da trama, Aschenbach firmemente reprime seus impulsos libidinosos. Contudo, como Freud teria previsto, a repressão apenas força os impulsos a emergirem de alguma outra forma, como através dos sonhos - Aschenbach tem devaneios com a mesma intensidade de visões. Seu devaneio de um pântano tropical e seu sonho do culto orgiástico do 'estranho deus' resumem a ânsia freudiana para o abandono erótico final na morte. Thomas Mann era um escritor econômico e oblíquo, do tipo que não desperdiçava uma palavra - cada detalhe que ele inclui é significativo, e cada detalhe atende à sua estratégia de sugerir, de dar dicas, mais do que dizer diretamente. Elementos aparentemente marginais, como um céu tempestuoso, vendedores de lápides em branco, a cor preta das gôndolas, os dentes de uma figura com trejeitos expostos por muito tempo, lembrando um crânio, são todos instrumentos que estabelecem uma atmosfera de mau presságio e prenunciam a morte. O leitor não precisa esperar o final da estória para fazer a conexão entre a arte sensual e a morte; Mann forja a conexão gradualmente através de uma variedade de motivos trabalhando como em um concerto. Espetacular!!!
   E cabe uma conexão entre este livro impressionante e um filme de um dos maiores cineastas de todos os tempos, Ernst Ingmar Bergman (1918-2007). Ele foi um diretor, escritor e produtor de filmes, peças de teatro e televisão nascido na Suécia. Dirigiu em torno de 60 filmes e documentários para cinema e televisão, a maioria dos quais também escreveu. Ainda escreveu e dirigiu mais de uma centena de peças de teatro. A maioria de seus filmes era ambientado nas paisagens suecas. Suas obras frequentemente lidam com temas como a morte, doença, fé, traição, tristeza, solidão e insanidade.
   No filme de 1953, Monika e o Desejo (Summer with Monika), a inspiração veio de uma pequena estória que mais tarde se transformou num romance do escritor sueco Per Anders Fogelström (1917-1988). A ideia original, nas palavras do próprio Fogelström, era: '... é sobre uma garota e um rapaz, apenas crianças, que deixam seus trabalhos e suas famílias e se mandam para o arquipélago. E depois retornam para a cidade e tentam sobreviver em um tipo de existência burguesa. Mas tudo vira um inferno para eles.' Ao longo do desenvolvimento do filme, entretanto, muitas coisas foram mudando, e o foco da narrativa mudou de Harry para Monika, embora o filme tenha mantido o mesmo título sugerido pelo texto do escritor Fogelström (o título sugere um filme contado sob a perspectiva de um homem). O pequeno elenco era composto de atores relativamente pouco conhecidos dentro da comunidade sueca de cinema à época. Lars Ekborg, que faz o papel de Harry, era mais conhecido como ator de teatro; Harriet Andersson, que faz o papel de Monika, acabou trabalhando também com Bergman em outros filmes: Através de um Espelho (Through a Glass Darkly) e Persona. Segundo o diretor, o papel de Monika foi desenvolvido especificamente com aquela atriz em mente. Houve um breve romance entre o diretor e a atriz, e esta teve a carreira propulsada por ele.

Ingmar Bergman (1918-2007)

Harriet Andersson (1932-      )

Lars Ekborg (1926-1969)

Per Anders Fogelström (1917-1988)
   Vários críticos comentam que Monika e o Desejo é um filme que, esteticamente, é amplamente inspirado pelo movimento neorealista italiano, mais especificamente pelo diretor e ator Vittorio de Sica (1901-1974), muito conhecido por Ladrões de Bicicleta (de 1948). O neorealismo italiano é um estilo de filme em que as narrativas focam em personagens de classes mais baixa, tendo como pano de fundo os ambientes de trabalho destes personagens e utilizando atores não profissionais. A trama envolve Monika, uma sensual e autoritária jovem vendedora de legumes que é constantemente perseguida sexualmente pelos homens; ela encontra o jovem Harry, que é de uma classe social um pouco mais elevada, talvez até mais burguês do que ela. Independente disto, ambos se apaixonam e fogem da cidade e de todas as suas pressões sociais para perseguirem sua relação romântica. Eles roubam um barco do pai de Harry e navegam para uma ilha sueca planejando passar o verão lá. Ao longo de sua viagem, que em princípio parece idílica, as realidades da cidade voltam a assombrar o casal; Monika engravida e eles ficam sem comida e chegam a roubar de uma casa de família alimentos para subsistência. No entanto, no tempo em que ficaram juntos, Monika acaba trazendo Harry para a fase adulta. Ela o ensina a dançar, a fazer amor e mesmo a roubar legumes. Mas, quando é chegada a hora de voltar para a cidade, percebe-se que Monika é mais uma das personagens muito retratadas em várias grandes obras literárias, como em Madame Bovary, de Flaubert; uma mulher que sofre de profundo tédio, de desilusão romântica perpétua, inquietação. Não importa o que ela tem, onde ela está, ela parece nunca chegar a se sentir feliz; ela sempre irá desejar o que não tem. Ela tem uma espécie de doença de escapismo; nunca fica feliz em sua condição corrente. Harry chega à cidade e tenta integrar Monika dentro do estilo de vida burguês, mas ela rapidamente fica insatisfeita com a vida doméstica e detesta passar o tempo com seu filho. O filme termina com Monika abandonando Harry à própria sorte e também a criança, com os móveis do casal sendo vendidos e Harry se olhando no espelho enquanto se recorda do tempo em que esteve na ilha com Monika, e de como isto mudou, para melhor ou pior, a sua vida para sempre.

Vittorio de Sica (1901-1974)
   Apesar das cenas idílicas na ilha, com belíssima fotografia, uma das cenas mais marcantes do cinema tem lugar no bar de jazz próximo ao final do filme, em que Monika está passeando e curtindo, enquanto Harry ainda está no trabalho. Na cena, ela olha diretamente para a câmera e o espectador tem uma forte impressão de sua emoção no momento; este efeito é reforçado pelo fato de que Bergman permite a subjetividade da interpretação da audiência ao não apresentar falas de Monika para explicar seu próprio olhar - em vez disto, apenas a apresenta silenciosa, olhando diretamente para a câmera por dez longos e arrastados segundos... O fascinante, entretanto, é que aqueles dez segundos são feitos para serem sentidos quase que como uma hora, enquanto nós, como espectadores, perdemos-nos na paixão e no mistério que permanecem dormentes nos olhos de Monika. É quase como se estivéssemos assistindo a uma peça de teatro (aliás, esta é uma característica bem marcante do estilo de Bergman - os personagens são enquadrados como se estivéssemos assistindo a uma peça de teatro em seus filmes), e a atriz principal estivesse olhando para a audiência, quebrando a 'quarta' parede, implicitamente clamando por nosso julgamento. Se é ou não este o caso, a técnica de Bergman (em colaboração com o seu cinematografista Gunnar Fischer, 1910-2011), neste filme mais do início de sua carreira, é maravilhosamente impressionante. Há muitos que consideram esta produção profunda em sua cinematografia e inovadora na construção do tema e da narrativa. Obviamente, muitos dos trabalhos de Bergman posteriores são muitos mais impressionantes, mas é sempre gratificante rastrear o crescimento e progressão do artista como uma carreira se desenrolando ao longo dos anos.

Gunnar Fischer (1910-2011)

Capa do filme 'Monika e o Desejo', de 1953



   Enfim, no filme há também a temática de que a entrega total ao desejo, à emoção, acaba não gerando o fruto da felicidade tão almejada pelo ser humano, e o fim da entrega a este extremo em um dos polos humanos como anteriormente descrito, e mesmo apresentado no livro de Thomas Mann, não se traduz num final completo em si. A alma humana parece se encontrar eternamente insatisfeita, e esta entrega a Jacinto (estando no outro extremo Apolo), é uma espécie de escapismo imaturo de que toda alma necessita, como que a lembrar que somos também instinto, antes de completamente racionais. Mas, embora o ato de estar naquele extremo do desejo em si seja extremamente prazeroso, no final de tudo, o resultado é, na grande maioria das vezes, realista e incompleto, e saímos por aí, vagando em busca de um sentido... Ingmar Bergman tentou achar este sentido, e não precisa ser nenhum grande entendedor de cinema para perceber que sua redenção era a ARTE. Veremos em novas análises de seus filmes a recorrência desta redenção! Boa semana a todos!