domingo, 13 de julho de 2014

O Som e a Fúria

   Já vimos em postagens anteriores alguns dados sobre a biografia de William Faulkner, indiscutivelmente um dos maiores autores de todos os tempos. Ele se interessou particularmente pelo declínio do Sul dos Estados Unidos da América após a Guerra Civil. Muitos dos seus romances exploram a deterioração da aristocracia do Sul após a destruição dos seu estilo de vida com esta guerra e após a Reconstrução. Faulkner popularizou Yoknapatawpha, o seu condado fictício em alguns romances, com o esqueleto de velhas mansões e com os fantasmas de grandes homens, patriarcas e generais do passado cujas famílias aristocráticas falharam em suceder e manter suas grandezas históricas. Sob a sombra da grandeza do passado, estas famílias tentam se apegar a valores antigos e tradicionais do Sul, a códigos e mitos que estão corrompidos e fora de lugar na realidade do mundo moderno. As famílias nos romances de Faulkner estão cheias de filhos que falharam, filhas desonradas e ressentimentos fumegantes entre brancos e negros no rescaldo da escravidão afro-americana.
   Primeiramente publicado em 1929, O Som e a Fúria (The Sound and the Fury) é reconhecido como um dos romances americanos de maior sucesso inovativo e experimental do seu tempo, sem mencionar que é um dos romances de interpretação mais desafiadora. O livro contempla a ruína dos Compson, que foram uma família proeminente em Jefferson, Mississippi, desde antes da Guerra Civil. Faulkner representa a experiência humana ao retratar eventos e imagens subjetivas, através de memórias de infância de diferentes personagens. O estilo do romance em fluxo de consciência é frequentemente muito opaco, na medida em que os eventos são frequentemente obscurecidos e narrados fora de ordem. A despeito de sua complexidade formidável, O Som e a Fúria é um romance avassalador e profundamente comovente, além de ser geralmente considerado o mais importante e notável trabalho literário do autor.

William Faulkner
   É difícil tentar descrever a trama de forma tradicional e linear, pois o livro não é apresentado assim. Num nível básico, o romance trata das obsessões dos três irmãos Compson pela irmã Caddy, mas vamos tentar representar pelo menos a superfície do que contém a estória. Contada em quatro capítulos, por quatro diferentes vozes, e fora da ordem cronológica, O Som e a Fúria requer intensa concentração e paciência para a interpretação e compreensão mais fidedignos. Os três primeiros capítulos consistem de pensamentos distorcidos, vozes e memórias dos três irmãos, capturados em três dias diferentes. Os irmãos são Benjy, um retardado de trinta e três anos de idade, falando em abril de 1928, Quentin, um jovem estudante de Harvard, falando em junho de 1910, e Jason, um trabalhador de suprimentos para fazenda amargurado, falando, novamente, em abril de 1928. O quarto capítulo é na própria voz narrativa do autor, mas mantém um foco em Dilsey, a ama negra da casa da família, devota a esta, que desempenhou um grande papel no crescimento das crianças. Faulkner aproveita as memórias que os irmãos têm da irmã, Caddy, usando um momento simbólico único para prever o declínio da, uma vez proeminente, família Compson e para examinar a deterioração da aristocracia do Sul desde a Guerra Civil.
   Os Compson são uma das muitas famílias proeminentes na cidade de Jefferson, Mississippi. Os seus antecessores ajudaram a desenvolver instalações na área e subsequentemente a defenderam durante a Guerra Civil. Desde a guerra, a família viu, gradativamente, suas riquezas, terras e status desmoronarem. O Sr. Compson é um alcoólatra. A Sra. Compson é uma hipocondríaca que dependeu quase completamente de Dilsey para criar seus quatro filhos. Quentin, o filho mais velho, é um sensível cheio de neuroses. Caddy é teimosa, mas amorosa e compassiva. Jason tem sido difícil e mesquinho desde que nasceu e é amplamente rejeitado pelas outras crianças. Benjy é um idiota, mentalmente retardado, e não compreende os conceitos de tempo e moralidade. Na ausência da ensimesmada Sra. Compson, Caddy serve como uma figura materna e símbolo de afeição para Benjy e Quentin. Na medida em que as crianças crescem, entretanto, Caddy começa a ter um comportamento promíscuo, o que atormenta Quentin e deixa Benjy em ataques de gemido e choro. Quentin está se preparando para ir para Harvard, e o Sr. Compson vende uma grande porção de terra da família para que aquele possa estudar naquela universidade. Caddy perde a virgindade e engravida. Ela não consegue ou não deseja nomear o pai da criança, embora talvez seja Dalton Ames, um garoto da cidade. A gravidez de Caddy deixa Quentin emocionalmente despedaçado. Ele tenta falsamente assumir a responsabilidade pela gravidez, mentindo para o seu pai e dizendo que ele e Caddy cometeram incesto. O pai é indiferente à promiscuidade da filha, descartando a estória de Quentin e mandando o seu filho ir mais cedo para o nordeste.


   Tentando encobrir suas indiscrições, Caddy rapidamente se casa com Herbert Head, um banqueiro que ela conheceu em Indiana. Herbert promete a Jason Compson um emprego em seu banco. Herbert se divorcia imediatamente de Caddy e rescinde o contrato de Jason quando descobre que sua esposa está grávida de outro homem. Enquanto isto, Quentin, ainda atolado em desespero sobre o pecado de Caddy, comete suicídio se afogando num rio pouco antes do final do primeiro ano em Harvard. Os Compson renegam Caddy da família, mas acabam adotando a sua filha, a Srta. Quentin. A tarefa de cuidar dela recai diretamente sobre os ombros de Dilsey. O Sr. Compson morre por complicações relacionadas ao alcoolismo cerca de um ano após o suicídio de Quentin. Como o filho mais velho dos restantes, Jason se torna o chefe da família. Amargamente empregado em um trabalho servil numa loja de suprimentos para fazenda, Jason inventa um esquema engenhoso para roubar o dinheiro que Caddy envia para o sustento da Srta. Quentin. Esta cresce e, na adolescência, torna-se uma garota infeliz, rebelde e promíscua, constantemente em conflito com seu tio Jason, arrogante e cruel. No domingo de Páscoa de 1928, a Srta. Quentin rouba milhares de dólares de Jason e foge com um homem que trabalhava com um grupo itinerante. Enquanto Jason persegue a Srta. Quentin sem sucesso, Dilsey leva Benjy e o resto da família para a cerimônia de Páscoa numa igreja local.
   O título do livro, O Som e a Fúria, se refere a um trecho de Macbeth, de William Shakespeare. Macbeth, um general e nobre escocês, fica sabendo do suicídio de sua esposa e sente que sua vida está desmoronando no caos. Em adição ao título do livro de Faulkner, podem ser percebidos muitos importantes motivos do romance no trecho do Ato V, Cena V do livro do bardo inglês.

Tomorrow, and tomorrow, and tomorrow                          O amanhã, o amanhã, outro amanhã,
Creeps in this petty pace from day to day                          Dia a dia se escoam de mansinho,
To the last syllable of recorded time,                                 Até que chegue, alfim, a última sílaba
And all our yesterdays have lighted fools                          Do livro da memória. Nossos ontens
The way to dusty death. Out, out, brief candle.                 Para os tolos a estrada deixam clara
Life’s but a walking shadow, a poor player                       Da empoeirada morte. Fora! Apaga-te,
That struts and frets his hour upon the stage,                    Candeia transitória! A vida é apenas
And then is heard no more. It is a tale                               Uma sombra ambulante, um pobre cômico
Told by an idiot, full of sound and fury,                            Que se empavona e agita por uma hora
Signifying nothing.                                                            No palco, sem que seja, após, ouvido;

                                                                                           É uma história contada por idiotas, 
                                                                                           Cheia de fúria e muita barulheira, 
                                                                                           Que nada significa.
                                                                                                 (tradução de Carlos Alberto Nunes)


   O Som e a Fúria literalmente começa com uma 'história contada por um idiota', já que o primeiro capítulo é narrado por um Benjy retardado. As preocupações centrais do romance envolvem o tempo, e isto também se observa no monólogo inicial do trecho apresentado acima - no fim do trecho, percebe-se um lamento de que a vida não significa nada. Além disto, Quentin é assolado por uma sensação de que a família Compson se desintegrou a uma mera sombra das suas grandezas do passado. No monólogo, Macbeth implica que a vida não é mais do que uma sobra do passado, e que um homem moderno, como ele, está inadequadamente equipado e é incapaz de conseguir qualquer coisa próxima da grandeza do passado. Faulkner reinterpreta esta ideia, implicando que se um homem não tirar a sua própria vida, como Quentin o faz, as únicas alternativas são se tornar cínico e materialista, como Jason, ou um idiota, como Benjy, incapaz de ver a vida como algo mais que uma série de imagens, sons e memórias sem significado.
   Teceremos alguns comentários sobre os personagens mais importantes. O Sr Jason Compson III é alguém bem conceituado, mas muito cínico e distante. Ele se dedica a uma filosofia de determinismo e fatalismo - ele acredita que a vida é essencialmente sem significado e que pouco ele pode fazer para mudar os eventos que acontecem à sua família. A despeito de seu cinismo, entretanto, ele mantém noções de cavalheirismo e honra familiar, o que Quentin acaba herdando. O Sr Compson arrisca a situação financeira da família em troca de um potencial prestígio de ter um filho estudando em Harvard, e ele conta estórias que promovem uma obsessão quase fanática com relação ao nome da família por parte de Quentin. Embora ele inspire em seu filho o conceito de honra da família, o Sr Compson não está preocupado com isto na prática. Ele age de forma indiferente a Quentin com relação à gravidez de Caddy, dizendo a ele, Quentin, que aceite isto porque se trata de uma deficiência natural da mulher. Esta indiferença irrita Quentin sobremaneira, que se envergonha pelo desrespeito de seu pai com relação aos ideais tradicionais de honra e virtude do Sul dos EUA. O Sr Compson descarta as preocupações de Quentin com relação a Caddy e diz ao seu filho para não levar as coisas muito a sério, o que inicia a rápida queda de Quentin em direção à depressão e ao suicídio. O Sr Compson morre por complicações relacionadas ao álcool pouco depois deste evento.
   A Sra. Caroline Compson é uma personagem negligente e desrespeitosa, o que contribui diretamente para a queda da família. Constantemente perdida em uma névoa egocêntrica de hipocondria e autopiedade, ela é ausente como figura materna para seus filhos e não tem senso das necessidades destes. Ela chega a tratar Benjy, o deficiente mental, de forma cruel e egoísta. Ela tolamente esbanja todo o seu amor e atenção sobre Jason, o único filho incapaz de retribuir estes. A egocentricidade da Sra Compson inclui uma insegurança neurótica com relação ao seu sobrenome Bascomb, família esta cuja honra é prejudicada pelo comportamento adúltero de seu irmão, Maury. Caroline finalmente toma a decisão de mudar o nome de seu filho mais novo de Maury para Benjamin por causa da insegurança com relação à reputação de sua família.


   Candace Compson, a Caddy, é, talvez, a figura mais importante no romance, já que representa o objeto de obsessão de todos os três irmãos. Enquanto criança, Caddy é algo teimosa, mas muito amorosa e afetuosa. Ela acaba se encaixando como uma figura materna para Quentin e Benjy no lugar da egocêntrica Sra. Compson. A turvação de suas roupas íntimas na correnteza enquanto garota antecipa sua promiscuidade mais adiante na vida. Além disto, pressagia e simboliza a vergonha que sua conduta traz para a família Compson. Caddy realmente sente algum grau de culpa com relação à sua promiscuidade, porque ela sabe que isto muito irrita Benjy. Por outro lado, ela não parece compreender o desespero de Quentin com relação a este seu jeito. Ela rejeita o código moral sulista que definiu a história de sua família e que preocupa a mente de Quentin. Diferente deste, que é incapaz de escapar do mundo trágico da família Compson, Caddy consegue construir a própria fuga. Embora ela seja repudiada, nós sentimos que esta rejeição lhe permite escapar de um ambiente a que ela não pertence de fato.
   Um gemente e mudo idiota, Benjy é totalmente dependente de Caddy, sua única fonte real de afeição. Ele não pode compreender qualquer conceito abstrato: tempo, causa e efeito, certo e errado - ele simplesmente absorve sinais auditivos e visuais do mundo ao seu redor. A despeito de sua total inabilidade para compreender ou interpretar o mundo, entretanto, Benjy tem, de fato, uma sensibilidade aguda para a ordem e o caos, e ele pode sentir imediatamente a presença de qualquer coisa má, errada ou fora do lugar. Ele é capaz de sentir o suicídio de Quentin milhares de milhas distante em Harvard, além de sentir a promiscuidade e perda da virgindade de Caddy. Sob a luz desta habilidade, Benjy é um dos poucos personagens que verdadeiramente notam o declínio progressivo da família Compson. Entretanto, sua deficiência o deixa incapaz de formular qualquer resposta que não seja gemer e chorar. A impotência de Benjy, bem como a impotência de todos os outros homens da família Compson, é simbolizada por sua castração durante a adolescência e encarnada nesta.
   O mais velho dos filhos, Quentin sente uma carga excessiva de responsabilidade para viver de acordo com a grandeza e o prestígio de sua família no passado. Ele é um jovem muito inteligente e sensível, mas se sente paralisado pela obsessão por Caddy e por uma preocupação com um código de moral e conduta tradicional dos sulistas. Este código define a ordem e o caos dentro do mundo de Quentin, e isto o leva a idealizar conceitos abstratos e nebulosos de honra, virtude e mesmo pureza feminina. Esta crença estrita no código causa a ele grande desespero quando descobre a promiscuidade de Caddy. Procurando ter o pai, o Sr Compson, como guia e orientador, Quentin se sente ainda pior quando descobre que o pai não liga para o código sulista ou para a vergonha que a postura de Caddy trouxe para a família. Quando Quentin percebe que sua irmã e seu pai não ligam para o código moral e de honra que dá ordem e significado para a vida dele, ele é conduzido ao desânimo e acaba se suicidando. O código sulista que Quentin procura seguir também faz com que ele não seja um homem pragmático. Esta conduta o deixa cegamente devoto a conceitos abstratos que o impedem de agir de forma assertiva e efetiva. Ele é cheio de ideias vagas, como o pacto de suicídio com Caddy ou o desejo de vingança contra Dalton Ames, mas suas ideias são sempre inespecíficas e, inevitavelmente, acabam ou sendo rejeitadas por outros ou executadas de forma ineficaz. O foco de Quentin em ideias mais do que em ações o torna um narrador altamente incerto, de modo que geralmente é difícil dizer quais das ações que ele descreveu realmente ocorreram ou não passaram de fantasia.


   Com relação a Jason Compson IV, seu legado, desde a tenra infância, é de malícia e ódio. Ele permanece distante das outras crianças. Como seus irmãos, Jason tem fixação por Caddy, mas esta fixação é baseada em amargura e um desejo de trazer problemas a ela. Ironicamente, o Jason sem afeto é o único filho que recebe afeição da mãe. Jason não tem capacidade para aceitar, aproveitar e retribuir este amor, e acaba manipulando este amor para roubar dinheiro da Srta. Quentin pelas costas da Sra. Compson. Ele rejeita não somente o amor familiar, mas também o amor romântico. Ele detesta todas as mulheres de forma fervorosa e assim não consegue se relacionar ou casar e ter filhos. A única satisfação romântica enquanto adulto é adquirida com uma prostituta de Memphis. Diferente de Quentin, que é obcecado com o passado, Jason pensa somente no presente e no futuro imediato. Ele tenta constantemente mudar as circunstâncias ao seu favor, quase sempre às expensas de outros. Jason é muito esperto e calculista, mas ele nunca usa estes talentos com o espírito de benevolência e generosidade. Embora ele claramente deseje ganho pessoal, não apresenta objetivos ou aspirações maiores. Ele rouba e acumula dinheiro em um cofre mas sem um propósito em particular, somente por egoísmo. No todo, Jason é extremamente motivado mas completamente sem ambição. A falta de realização dele tem origem primariamente em sua implacável autopiedade. Ele nunca perdoa Caddy pela perda do emprego no banco de Herbert, e é incapaz de superar este evento e conquistar qualquer objetivo válido em sua vida posterior. Ironicamente, Jason se torna o chefe da família Compson após a morte de seu pai - uma indicação do quão fundo a família, outrora grande, conseguiu chegar.
   A Srta. Quentin é o único membro da família a chegar à nova geração. Muitos paralelos surgem entre ela e sua mãe, mas as duas diferem em aspectos importantes. A Srta. Quentin repete a promiscuidade sexual de sua mãe cedo na vida, mas, diferente de Caddy, ela não se sente culpada pelo seus atos. Da mesma forma, a Srta. Quentin cresce em um mundo pior e mais confinado em relação a sua mãe, além de ser constante alvo da crueldade dominadora de seu tio Jason. Não surpreendentemente, vemos que a Srta. Quentin não é tão amorosa ou compassiva como sua mãe. Ela também é mais mundana e teimosa do que Caddy. Entretanto, o sucesso em recuperar o seu dinheiro, roubado por seu tio, e sua fuga da família, implicam que seu mundanismo e ausência de escrúpulos, valores muito modernos, na verdade trabalham em seu benefício.
   Dilsey é a única fonte de estabilidade no seio da família Compson. Ela é o único personagem destacado o suficiente da queda dos Compson para testemunhar tanto o capítulo inicial como o final da história da família. De forma interessante, Dilsey vive a sua vida baseada no mesmo conjunto de valores fundamentais - família, fé, honra pessoal, entre outros - sob os quais a grandeza original dos Compson foi construída. Entretanto, ela não se permite que o egocentrismo corrompa seus valore ou o seu espírito. Ela é muito paciente e altruísta: ela cozinha, limpa e cuida dos filhos dos Compson na ausência da Sra. Compson, ao mesmo tempo em que cria seus próprios filhos e netos. Dilsey parece ser a única pessoa no meio da família Compson realmente preocupada com o bem estar e o caráter das crianças, e ela trata todas estas com amor e justiça, até mesmo Benjy. O foco do último capítulo do romance em Dilsey implica uma esperança de renovação depois que as tragédias aconteceram. Sentimos que ela é a nova 'portadora da tocha' do legado dos Compson, representando a única esperança na ressurreição dos valores do velho Sul de uma forma pura e não corrompida.


   Vamos lá! Com relação aos temas, alguns merecem grande destaque. Um deles é a corrupção dos valores aristocráticos do sul norte-americano. A primeira metade do século XIX viu o surgimento de um número considerável de famílias proeminentes como os Compson. Estas famílias aristocráticas criaram valores sulistas que viraram tradição. Esperava-se que os homens agissem como cavalheiros, demonstrando coragem, poder moral, perseverança e cavalheirismo também na defesa da honra do nome de suas famílias. Esperava-se das mulheres serem modelos de pureza feminina, graça e virgindade até que chegasse o momento em que elas deveriam ter filhos que viessem a herdar o legado da família. Fé em Deus e profunda preocupação pela preservação da reputação da família foram capazes de promover as bases para estas crenças. A Guerra Civil e a Reconstrução devastaram muitas destas famílias, uma vez grandes economicamente, socialmente e psicologicamente. Faulkner acredita que, neste processo, os Compson, e outras famílias similares do Sul, perderam o contato com a realidade ao seu redor e se perderam na névoa do egocentrismo. Esta auto-absorção corrompeu o conjunto de valores fundamentais destas famílias, deixando as novas gerações completamente desestruturadas para lidar com as realidades do mundo moderno. Nós vemos essa corrupção 'correndo solta' na família Compson. O Sr. Compson tem uma noção vaga de honra familiar - algo que ele passa para Quentin - mas está atolado no seu alcoolismo e mantém uma crença fatalista de que ele não pode controlar os eventos que acontecem à sua família. A Sra. Compson é, da mesma forma, auto-absorvida, vivendo na hipocondria e autopiedade e permanecendo distante emocionalmente de suas crianças. A obsessão de Quentin pela moralidade do velho Sul o deixa paralisado e incapaz de deixar no passado os pecados de sua família. Caddy pisoteia a noção de pureza feminina dos sulistas e vive em promiscuidade, e o mesmo caminho segue a sua filha. Jason gasta sua esperteza em autopiedade e ganância, esforçando-se constantemente para ganho pessoal mas sem aspirações maiores. Benjy não comete nenhum pecado real, mas o declínio dos Compson é fisicamente manifestado através de seu retardo e de sua inabilidade para diferenciar a moralidade da imoralidade. A corrupção dos valores sulistas por parte dos Compson resulta em um completo desprovimento de amor, a força que uma vez manteve a família unida. Ambos os pais são distantes e ineficazes. Caddy, a única criança que demonstra habilidade para amar, acaba sendo repudiada. Embora Quentin ame Caddy, seu amor é neurótico, obsessivo e superprotecionista. Nenhum dos homens vivencia qualquer amor romântico verdadeiro, e, assim, eles são incapazes de se casar e continuar o nome da família. Na conclusão do romance, Dilsey é o único membro amável da casa, o único personagem que mantém seus valores sem a influência corruptora do egocentrismo. Ela, assim, vem representar uma esperança para a renovação dos valores tradicionais do Sul de uma forma positiva e sem corrupção. O romance termina com Dilsey sendo a centralizadora destes valores, e, desta forma, a única esperança para a preservação do legado dos Compson. Faulkner implica que o problema não são os valores do Sul propriamente ditos, mas o fato de estes valores terem sido corrompidos por famílias como os Compson, e que estes devem ser recuperados para que qualquer grandeza sulista possa retornar.


   Outro tema é o da ressurreição e renovação. Três das quatro seções do romance acontecem na Páscoa de 1928. O posicionamento do clímax do romance neste fim de semana é significativo, já que este é associado à crucificação de Cristo na Sexta da Paixão e à sua ressurreição no Domingo de Páscoa. Um grupo de eventos simbólicos pode ser associado à morte de Cristo: a morte de Quentin, a morte do Sr. Compson, a perda da virgindade de Caddy ou mesmo o declínio da família Compson de um modo geral. Alguns críticos caracterizam Benjy como uma figura do Cristo, já que ele nasceu num Sábado de Aleluia e tem, no momento em que a estória se passa, trinta e três anos, a mesma idade do Cristo quando da crucificação. Interpretar Benjy como uma representação do Cristo tem uma variedade de implicações possíveis: Benjy pode representar a impotência do Cristo no mundo moderno e a necessidade do surgimento de uma nova figura do Cristo. Alternativamente, Faulkner pode estar querendo dizer que o mundo moderno falhou em reconhecer o Cristo em seu próprio meio. Assim, embora o fim de semana pascoal esteja associado com a morte, ele também traz a esperança da renovação e da ressurreição. Embora a família Compson tenha falhado, Dilsey representa uma fonte de esperança. Dilsey é, de alguma forma, uma figura do Cristo. Um paralelo literal pode ser feito entre a vida de Dilsey e o sofrimento servil descrito na Bíblia, já que ela serviu sua longa vida a serviço da família Compson, que se encontra em desintegração. Ela tolerou constantemente a autopiedade da Sra. Compson, a crueldade de Jason e a incapacidade frustrante de Benjy. Enquanto os Compson desmoronam ao seu redor, Dilsey emerge como a única personagem que ressuscitou com sucesso os valores que os Compson há muito já abandonaram - trabalho duro, perseverança, amor familiar e fé religiosa.
   Um último tema é a falha da linguagem e da narrativa. Faulkner admitiu que jamais conseguiria transmitir de forma satisfatória a estória de O Som e a Fúria através de uma voz narrativa única. Sua decisão de usar quatro diferentes narradores destaca a subjetividade de cada narrativa e lança dúvida na habilidade da linguagem em transmitir a verdade ou o significado absoluto. Benjy, Quentin e Jason têm visões muito diferentes da tragédia dos Compson, mas nenhuma das perspectivas parece mais válida do que a outra. À medida em que cada novo ângulo emerge, mais detalhes e questionamentos surgem. Até mesmo a seção final, com seu narrador em terceira pessoa, onisciente, não amarra todas as pontas soltas da estória. Em entrevistas, Faulkner lamentava a imperfeição da versão final do romance, o que ele denominou de sua 'mais esplêndida falha'. Mesmo com quatro narradores provendo as profundezas de quatro diferentes perspectivas, Faulkner acreditava que sua linguagem e narrativa ainda soavam aquém do desejado. (Percebe-se claramente a humildade de um gigante!)
   Com relação aos motivos, discutiremos três deles. Um primeiro seria o tempo. O tratamento e a representação do tempo por Faulkner neste romance foram aclamados como revolucionários. O autor sugere que o tempo não é uma entidade constante ou objetivamente compreensível, e os humanos podem interagir com ele de várias formas. Benjy não tem nenhuma conceito do tempo e não pode distinguir entre o passado e o presente. Sua incapacidade faz com que ele desenhe conexões entre o passado e o presente que os outros possam não visualizar, e o permite escapar das obsessões dos outros Compson com relação à grandeza passada do nome da família. Quentin, em contraste, está preso pelo tempo, incapaz e sem vontade de ir além de suas memórias do passado. Ele tenta escapar da armadilha do tempo quebrando seu relógio, mas o tique-taque deste continua a assombrá-lo mais tarde, e ele não enxerga outra solução que não o suicídio. Diferente de seu irmão Quentin, Jason não vê nenhum uso do passado. Ele mantém o foco completamente no presente e futuro imediato. Para Jason, o tempo existe apenas para ganho pessoal e não pode ser desperdiçado. Dilsey é, talvez, a única personagem em paz com o tempo. Ao contrário dos Compson, que tentam escapar do tempo ou manipulá-lo em vantagem própria, Dilsey entende que a vida dela é uma pequena lasca na faixa sem limite do tempo e da história.
   Outro motivo interessante é o da ordem e caos. Cada um dos irmãos Compson compreende a ordem e o caos de uma forma diferente. Benjy constrói a ordem ao redor do padrão das memórias da família em sua mente e se torna irritado quando ele vivencia alguma coisa que não se encaixa neste padrão. Quentin se apega ao seu código idealizado do Sul para prover a ordem. Jason ordena tudo em seu mundo baseado no potencial do ganho pessoal, tentando mudar todas as circunstâncias para sua própria vantagem. Todos estes três sistemas falham na medida em que a família Compson mergulha no caos. Somente Dilsey tem um forte senso de ordem. Ela mantém seus valores, persevera a despeito da queda tumultuosa dos Compson e é a única que permanece intacta no final.
   Um último motivo são as sombras. Visualizada primariamente nas seções de Benjy e de Quentin, as sombras implicam que o estado presente da família Compson é meramente uma sombra de sua grandeza do passado. As sombras servem como uma sutil lembrança da passagem do tempo à medida em que lentamente se deslocam com o sol ao longo do curso do dia. Quentin é particularmente sensível às sombras, uma sugestão de sua consciência aguda de que o nome Compson é meramente uma sombra do que outrora fora.


   Por fim, teceremos alguns comentários sobre dois símbolos no romance. O primeiro deles é a água. Esta simboliza a limpeza e a pureza ao longo do livro, especialmente em relação a Caddy. Brincando na correnteza como uma criança, Caddy parece resumir a pureza e a inocência. Entretanto, ela suja suas roupas íntimas, o que antecipa a promiscuidade que irá fazer parte de sua conduta mais adiante. Benjy se irrita quando cheira o perfume de Caddy pela primeira vez. Ainda uma virgem neste ponto, Caddy se lava e tira o perfume, simbolicamente se livrando de seu pecado. Da mesma forma ela lava sua boca com sabão depois que Benjy pega ela no balanço com Charlie. Uma vez que Caddy perde sua virgindade, ela sabe que nenhum montante de água poderá limpar suas impurezas.
   Outro símbolo é o relógio de Quentin. Este fora um presente de seu pai, que espera que isto alivie o sentimento de que Quentin deve dedicar tanta atenção a olhar o tempo ele mesmo. Quentin é incapaz de escapar de sua preocupação com o tempo, com ou sem o relógio. Porque o relógio uma vez pertenceu ao Sr. Compson, ele lembra constantemente Quentin das heranças gloriosas que sua família considera tão importante. O tique-taque incessante do relógio simboliza a constante e inexorável passagem do tempo. Quentin inutilmente tenta escapar do tempo quebrando o relógio, mas ele continua o seu tique-taque, assolando-o mesmo depois que ele deixa o relógio pra trás no seu quarto.
   Obra inovadora, original, altamente imponente do ponto de vista literário, e, sem dúvida, um dos romances mais importantes da história da Literatura Universal. Com personagens marcantes, simbolismo esplêndido e referências muito bem aplicadas, é uma verdadeira obra-prima. O que aqui se colocou é muito pouco diante de tudo o que se pode discutir acerca deste livro; e não são poucos os estudos que insistem em surgir em muitas universidades norte-americanas e mesmo discussões de intelectuais e apreciadores da boa literatura. Ao concluir a leitura da obra e mergulhar em análises as mais diversas, enxergo que a releitura é obrigatória, e, certamente, a experiência nesta será revigorante e engrandecedora. Não são todos os livros que geram esta sensação. Questiono-me como se cria algo tão magistral como o que se vê nas linhas deste livro; concluo que, para isto, talvez sejam necessários cinco requisitos: 1. humildade, 2. amor incondicional pelas letras, 3. conhecimento profundo de outros grandes autores, 4. muito trabalho e 5. compreensão de que o papel da Literatura enquanto Arte em nossas vidas é essencial. Eis, em O Som e a Fúria, um exemplo cabal de tudo isto. Obra eterna! Transcende o espírito! Obrigado, Faulkner, onde quer que você esteja! A realidade não é, se não, uma busca incessante da graça, do transcendente, de um sentido, e acredito fielmente que poucos seres deste mundo sejam capazes de nos presentear com leituras tão vívidas desta busca. Uma boa semana a todos!

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