quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Carta ao meu filho em risos

   Caros leitores, esta postagem é uma conversa pessoal e particular com o meu filho Théo. Hoje completando o seu primeiro ano de existência fora do aconchego do ventre materno, pensei muito ao longo de alguns meses sobre o que poderia funcionar como um bom presente. Todo pai sonha em agradar ao extremo a sua prole, tentado dar-lhe o presente melhor possível neste dia - pode ser uma bela festa de aniversário, com um registro para a posteridade, um presente que tenha algum valor emocional e algum significado, ambos, etc. Eu, do meu lado, pensei que poderia deixar, como presente, uma conversa sobre o que ele, o meu filho, representa para mim, já que está com apenas um ano de vida, ainda não compreendendo algumas coisas importantes deste mundo, mas tendo mudado, e muito, o que se passa no meu coração interiorano, este que tem um ímpeto de demonstrar que aquilo que se sente lá dentro é algo universal. Em outras palavras, gostaria de deixar uma postagem sobre algumas coisas que poderiam ajudar a sua trajetória ao longo desta sinuosa estrada da vida, não querendo dizer, contudo, que sou portador do conhecimento da verdade ou da sabedoria absoluta, ou ainda que tenha vivido todas as emoções e delas extraído todos os ensinamentos nesta minha, até agora, curta vida. Esta minha breve existência neste mundo, no entanto, tem me mostrado que o segredo talvez esteja em reconhecer o sentido de tudo, e este, por onde quer que se olhe, recai sobre ele: o amor. E esta postagem, enfim, reveste-se de todo um significado particular porque, em outras palavras, representa a minha redenção e minha salvação, pois o amor que sinto por meu filho mudou, completamente, a minha existência, e sou alguém melhor...
   Querido Théo, quando você nasceu o dia estava calmo. Apolo ainda estava acordado, mas se preparava para dar lugar a Diana. Vivíamos um momento de relativa paz, sem grandes guerras existentes pelo mundo, embora isto fosse muito utópico de se conceber... Mas o que é utopia, meu filho? Numa das belas analogias a que fui apresentado (e analogias são muito importantes para que os pequeninos, como você, entendam alguns conceitos), utopia é como o horizonte: se você caminhar dois passos em direção a ele, ele se afastará dois passos de você; se você caminhar cem passos em direção a ele, ele se afastará cem passos de você - ou seja, é algo que nunca se irá alcançar, mas que existe para que se continue caminhando. Eu estava em paz quando peguei você nos braços a primeira vez, ainda na sala de parto, e fui questionado pela neonatologista sobre a ausência de meu choro, ao que respondi prontamente que quem deveria chorar era você... Entenda, meu filho, que o nascimento é o início de um ciclo, assim como a morte é o final deste mesmo ciclo; quando somos expostos a extremos de um sentimento, como a alegria suprema e indescritível a que fui exposto quando você nasceu, algumas vezes não somos capazes de digerir tamanha emoção prontamente, e somente com algum tempo é que se entende e se sente toda a plenitude da emoção, como aconteceu comigo... Uma semana antes de você chegar, sua bisavó materna foi ao encontro das nebulosas, e fui exposto ao extremo de uma outra emoção, a da tristeza profunda e inconsolável; da mesma forma, só com algum tempo conseguimos compreender todo o poder avassalador de uma perda, ainda que passemos a vida sabendo que, um dia, ela irá chegar. Nós, humanos, jamais nos acostumaremos com a perda de alguém, com a morte em si... Nunca! Mas imediatamente quando te peguei nos braços, minha alma foi banhada com imensa bem-aventurança, e imaginei o sol poente que devia estar ocorrendo em algum lugar ali próximo naquele instante... Por que será que nós, humanos, ficamos tão emotivos quando estamos diante do sol que se põe em frente ao mar? Por que, por mais que tentemos, não conseguimos definir quais são todas as cores que estão presentes no céu no instante particular que antecede o desaparecimento da silhueta solar no horizonte? Acho que porque, meu filho, naquele momento nos sentimos parte da existência, como se, naquele instante, sentíssemos que o sol nos contempla, do seu lado, e como se fizéssemos parte da mesma natureza, como realmente o é. Naquele momento, o sol e o homem são partes diferentes da mesma natureza, e a razão some para dar lugar ao coração, ao que é mais instintivo e emotivo, e esquecemos de perceber se o sol é redondo ou tem falhas ao seu redor, se há cores misturadas no céu acima de nós ou delinear as divisões de cores; naquele momento, a contemplação é da beleza da natureza, não importa como você esteja esteticamente colocando. Quando te vi a primeira vez, portanto, o contemplei como parte da mesma natureza de que sou parte... E, naquele momento, éramos um só! E fui completo!
   Querido Théo, o poder da natureza é tão grande que compartilhei, imediatamente após o instante em que vi os cuidados iniciais serem prestados a você, a introdução de um filme que, para mim, define a natureza humana, e, desde antes de você nascer, já havia definido como sendo uma espécie de simbologia entre mim e ti. Este filme, meu filho, é O Rei Leão. Deixe-me escrever um pouco sobre ele; entenda, entretanto, que, por mais que eu aqui coloque palavras, frases e explicações sobre o mesmo, um dia você lhe irá assistir, e muito mais irá compreender sobre o poder que ele tem sobre as pessoas (é a mesma analogia que se faz com o que senti quando você nasceu; por mais que lesse e alguém tentasse me explicar o que é ser pai, somente compreendi, e continuo aprendendo sobre isto, depois do seu nascimento e da mudança de minha condição para a de genitor). No filme, nas savanas africanas, um leão é o rei entre os animais. O nascimento de Simba, filho do rei Mufasa e da rainha Sarabi gera inveja e ressentimento no irmão mais jovem do rei, Scar, que sabe que seu sobrinho agora o substitui no direito à herança do trono. Quando Simba cresce um pouco e se torna um filhote ativo, Mufasa o ensina sobre o domínio do reino, sobre as responsabilidades de ser rei e sobre o ciclo da vida. Mais tarde naquele dia, Scar engana Simba e sua melhor amiga, Nala, ao incentivar a exploração de um território proibido, o cemitério de elefantes, a despeito dos protestos do arauto real, o mordomo Zazu. No cemitério, as hienas Shenzi, Banzai e Ed atacam os filhotes antes de Mufasa, alertado por Zazu, os resgatar e, a seguir, perdoar Simba por sua desobediência. Naquela noite, as hienas, aliadas a Scar, planejam matar Mufasa e Simba. No dia seguinte, Scar atrai Simba para um desfiladeiro e pede para que este espere lá enquanto o tio irá chamar Mufasa. Sob o comando de Scar, as hienas debandam uma manada de gnus em direção ao desfiladeiro. Mufasa resgata Simba, mas enquanto aquele tenta escalar as muralhas do desfiladeiro, Scar o joga de volta bem no meio da manada, onde ele fica aprisionado, é pisoteado e acaba morrendo. Após Simba encontrar o corpo do pai, Scar o convence de que o filhote fora o responsável pela morte de Mufasa e o aconselha a fugir do reinado. Enquanto Simba foge, Scar ordena que as hienas o matem, mas o filhote consegue escapar. Scar anuncia aos outros leões que tanto Mufasa quanto Simba foram mortos pela manada de gnus e acaba assumindo como o novo rei, permitindo que um grupo de hienas viva nas terras do reino.


   Querido Théo, após ter fugido para muito longe, Simba acaba entrando em colapso por exaustão no deserto. Timão e Pumba, um suricato e um javali, respectivamente, encontram-no e cuidam dele. Simba acaba crescendo no meio da selva com os novos amigos, vivendo de forma despreocupada sob o lema 'hakuna matata' (sem preocupações). Quando se torna um adulto jovem, Simba salva os novos amigos de uma leoa faminta, que acaba se mostrando como sendo Nala. Esta e Simba se reconciliam e se apaixonam. Nala exige que Simba retorne imediatamente para casa, dizendo para este que as terras do reino agora são terras devastadas, sem comida e água suficiente para todos. Sentindo-se culpado pela morte de seu pai, Simba se recusa a voltar e se irrita, deixando Nala desapontada e também com raiva. Enquanto Simba entra na selva, ele reencontra o macaco Rafiki, amigo e conselheiro de seu pai. Rafiki diz a Simba que Mufasa está 'vivo' e o leva para uma lagoa, nela Simba enxerga o próprio pai no seu reflexo na água e é visitado pelo espírito de Mufasa no céu, e este espírito diz a Simba que este precisa tomar de volta o seu lugar de direito no reinado. Simba percebe que não mais pode fugir do seu passado e volta para casa. Nala, Timão e Pumba se unem a ele e concordam em ajudá-lo a lutar. Nas terras do reinado, Simba enfrenta Scar, que provoca aquele, insinuando que o filho teve culpa na morte de Mufasa. Mas, quando Scar empurra Simba para o limite do precipício, o tio admite que ele mesmo matou Mufasa. Enraivecido, Simba ruge e força Scar a revelar a verdade aos outros leões. Timão, Pumba, Rafiki, Zazu e as leoas enfrentam as hienas, enquanto Scar é encurralado por Simba no topo da 'Pedra do Rei'. Scar implora Simba por clemência, alegando ser da família e colocando a culpa nas hienas. Simba diz que não acredita mais em Scar, mas poupa sua vida e ordena que ele deixe as terras do reinado para sempre. Scar humildemente passa por ele, mas de repente ataca o sobrinho. Depois de uma batalha feroz, Simba joga seu tio para fora da 'Pedra do Rei'. Scar sobrevive à queda, mas é atacado e morto pela hienas, que ouviram sua tentativa de trai-las. Com Scar e as hienas fora do reinado, Simba ascende ao topo da 'Pedra do Rei' e se torna o rei; neste momento, a chuva cai novamente. Algum tempo depois, com a 'Pedra do Rei' tendo restaurado sua glória de outrora, Simba olha alegremente para o reinado com Nala, Timão e Pumba do seu lado; Rafiki apresenta o novo herdeiro de Simba e Nala aos habitantes do reinado, e o 'ciclo da vida' continua...





   Querido Théo, logo que soube que o meu primogênito seria um garoto, imediatamente me senti como Mufasa, e todo o simbolismo de O Rei Leão rechearia meu espírito para sempre... Ao considerar que és o meu Simba, inferem-se coisas que não cabem no meu peito de tão grandes. Primeiramente, rogo ao Pai maior de todos que me permita fazer a passagem antes de você (aliás, que papai assim não deseja?!) - que ele jamais permita que meu coração tenha que conviver sem a sua presença uma vez que você veio a este mundo. Em segundo lugar, que você possa aprender com as pessoas ao seu redor, mas, da mesma forma que sinto em minha essência algo certamente herdado de seu avô, que aprenda comigo que, na vida, os maiores ensinamentos virão dos pais, mesmo quando já para além da existência em carne; que você perceba em seu pai o espírito de justiça que urge tal qual em Mufasa, e que possa seguir este caminho para conquistar o seu lugar no mundo, nunca deixando de considerar as pessoas ao seu redor, porque delas precisa para viver... Jamais se esqueça disto! Em terceiro lugar, o filme é, para mim, muito forte no momento em que coloca que o pai tudo faria, e realmente acaba fazendo, para salvar e proteger o filho; assim, é importante que você saiba que, como Mufasa, eu morreria para manter você a salvo. Como pai, eu me colocaria prontamente em seu lugar num momento de doença, nas picadas das vacinas, nas tristezas da ausência dos pais que trabalham, nas cólicas, nas quedas e em tudo o mais; entretanto, a vida existe de uma forma em que muitas situações deverão ser vividas por cada indivíduo em particular para que sejam absorvidas e compreendidas. Mas, saiba que fazemos parte de uma existência milagrosa, pois somos uma das poucas espécies que depende completamente dos pais no início da vida para a sobrevivência; o ser humano não nasce pronto para enfrentar os caminhos tortuosos da vida... E que felicidade não foi para mim ter feito parte do milagre da vida em relação a você, Théo. Por fim, que aprenda que o sentimento maior do homem é o amor; não há vida sem amor, e este é a mola propulsora de todas os passos que o ser humano dá em vida. Quando ouvir alguém falar que trabalha por 'necessidade', por exemplo, saiba que, lá no fundo, este indivíduo que dizer que o que o move é o amor à sua família ou a si mesmo... Com tudo isto, concluo que o ser humano é, em essência, bom; que você não perca esta essência por nenhuma luxúria que o diabo venha a lhe apresentar no curso da sua existência. Saiba, nos momentos mais importantes de sua vida, ser o heroi de sua própria condição - seja o Simba!
   Querido Théo, estes são tempos imediatistas. As pessoas vivem em função de concessões e se aproximam das outras, muitas vezes, em função daquilo que podem conseguir delas, principalmente no nível material. Apesar do imediatismo, a intemperança que prevalece é a política. Aqui, emprego o termo 'política' no sentido de se tentar sempre ir vivendo e dissimulando enquanto se joga para adiante a resolução das situações que, hoje, urgem por soluções; em outras palavras, como a indignidade de não enfrentar os problemas... Por mais que possam vir a querer explicar algo diferente, espero que jamais deixe de encarar os problemas de frente - a paciência necessária deverá ser pela solução do que urge, mas sabendo que esta será consequência das medidas que você tomará no presente; ou seja, tenha paciência para se obter as consequências naturais do que construira e no que trabalhara anteriormente. Para tanto, não seja nem muito pessimista e nem muito otimista; seja, simplesmente, realista, mas com uma certa alegria no peito. E quando todos olharem para fora buscando culpados ou motivos, seja aquele que olha para dentro... Entenda que o mundo não existe para que nós vivamos, mas é parte da mesma natureza que, de alguma forma, rege o nosso viver; portanto, olhando para dentro, você estará olhando para a essência de toda a existência e, com certeza, encontrará aquilo que procura. Quando, por algum motivo, encontra-se muito sozinho porque procura dentro e ainda não acha a resolução de que necessita, procure conversar com as pessoas mais experientes - hoje vivemos num mundo que insiste em se considerar autosuficiente, e que muito se desrespeita aqueles que já viveram mais tempo por aqui, e acabamos esquecendo de cuidar, muitas vezes, de quem cuidou de nós antes na vida. Respeite sempre os mais velhos! SEMPRE! Não importa o que você ache das coisas da vida, saiba que sempre poderá absorver motivações profundas dos idosos. Aprenda com pessoas como o Rafiki, o macaco ancião que é o mentor de Mufasa. Quando não compreender o que está no seu interior, quando lá ainda não for capaz de encontrar as respostas, converse e aprenda com os mais velhos, eles sempre terão vivido o suficiente para te ensinar mais do que você imagina. Quando eu não mais estiver ao seu lado, saiba que sempre poderá aprender com um Rafiki amável que estará ao seu lado - quando você compreender que todo ensinamento é universal, e não local, não importando em que lugar do planeta você esteja, aí sim, meu filho, estará transcendendo para a maturidade e para o sentido da nossa existência. Ainda, aprenda com o Rafiki que não se deve julgar as pessoas; procure nunca fazer isto! Na verdade, procure compreender as motivações que geraram qualquer ação. Muitos dos que julgam são hipócritas porque fazem da mesma forma que aqueles que estão sendo massacrados de forma fria e desonrosa; se muitos dos que julgam no fundo cometem ações semelhantes aos que estão sendo julgados, tem-se que, em essência, somos todos iguais, e atendemos a motivações semelhantes instintivamente. O que nos torna mais sábios é a compreensão por meio do uso da razão e a utilização desta para se atingir um equilíbrio buscado por todos os seres humanos ao longo da vida: nem tanto à emoção e nem tanto à razão. Saiba escutar o seu coração, mas saiba sempre utilizar a razão para entender as consequências dos seus atos. Esteja sempre pronto para enfrentar estas, e saiba que, quando a motivação é nobre, os delineamentos dificilmente serão rudes. Enfim, procure ser sereno e nunca julgar os seus semelhantes.



   Querido Théo, O Rei Leão é muito importante na conotação de nossa própria existência; até hoje auxilia na formação ética e moral do espectador, principalmente o juvenil. Como Mufasa, espero sempre poder manter um discurso didático; as lições de vida que ele apresenta ao filhote refletem diretamente em nós, espectadores - o 'ciclo da vida' também serve para todos nós. O texto do filme também é marcado pela subjetividade, pois, mesmo com a retirada de Mufasa da narrativa após a morte deste, o roteiro deixa implícito que, não importa a posição social, os valores de bondade e paternidade, e mesmo a invulnerabilidade do personagem, o abraço fúnebre não faz distinção entre valores e riquezas. Mesmo que a história se baseie em uma tragédia (o filme é inspirado em Hamlet, peça de William Shakespeare), a alegria e a superação surgem na obra. Ora, a presença de personagens como Timão e Pumba em um determinado momento da narrativa deixa claro que as piores adversidades, muitas vezes, são superadas somente com o afeto e o amparo de grandes amigos. Gosto dos personagens do suricato e do javali porque eles simbolizam a comédia que deve existir na vida não importa o quão fundo você possa ir, mesmo nos momentos mais sombrios ela deve existir, como que a tentar polarizar sentimentos tão ruins, tão tristes. Mas o personagem mais impressionante talvez seja mesmo o macaco Rafiki. É através dele, meu filho, que se passam mensagens tão bonitas. É o macaco que ensina Simba a lidar com a dor e a morte, e mesmo a superá-las, inclusive a superar a grande culpa que acompanha o protagonista; entretanto, isto tem um custo. É interessante notar que Simba segue um caminho cheio de obstáculos ao atravessar um bosque lotado de velhas árvores antes de atingir a epifania necessária: Simba encontra o seu pai em espírito e conflui em sua redenção. O roteiro tem um grande trunfo, portanto, que é a interdependência entre os personagens numa sociedade em perfeita harmonia e cooperação.
   Querido Théo, apesar de não contar com personagens antropomorfizados, a história do filme nunca deixará de ser uma fábula. O roteiro se baseia na miscigenação entre as emoções humanas e a natureza selvagem dos animais. A empatia que os espectadores acabam desenvolvendo com os personagens provém disto. A forte paixão entre pai e filho, o primeiro amor, a misericórdia diante do inimigo, a amizade dos amigos, a adaptação a novos ambientes, o medo da perda e da dor, o abraço terno e o protecionismo paterno são bons exemplos disto. No filme, há sempre um contraste de alguma forma entre o que é bom e o que é ruim. Mufasa tem coloração clara, é forte, grande, sadio, ativo e apresenta uma juba mais imponente e voluptuosa. Scar é completamente diferente, já que é fraco, preguiçoso, magro, mais escuro em sua coloração e sempre está com as pupilas contraídas ao máximo (isto denota grande medo do personagem em relação ao seu irmão). Scar está sempre atento para não cometer nenhum deslize em seus planos maquiavélicos; além disto, o personagem sempre deixa suas garras à mostra, reforçando ainda mais a ideia de insegurança, transmitida subjetivamente. Ainda, meu filho, muito me inspira a trilha sonora do filme; duas das músicas são obras-primas transcendentais, além de reforçar bastante a grandiosidade do filme. Agradeço a Elton John por saber representar de forma tão poética e criativa muitas das emoções que guardo desde a adolescência, quando assisti ao filme pela primeira vez. Os brilhos de 'Circle of Life' e 'Can You Feel The Love Tonight' jamais irão se apagar. Jamais!
   Querido Théo, já que estamos falando de 'ciclo da vida', deixe-me concluir este breve escrito sobre o poder do filme em nossa vida falando do início da película. É louvável que a cena inicial seja tão forte e inspiradora, sendo, inclusive, motivo de apreço por parte de muitos espectadores, aí me incluindo particularmente. Assim que o macaco Rafiki entra no final da cena inicial, o espectador começa a entender o ciclo da vida e sua atmosfera, que mistura o natural e o espiritual. O macaco surge banhado pelos mais puros raios solares, que iluminam os demais seres. Após o ritual similar a um batismo, Rafiki toma Simba em seus braços e o apresenta para os outros animais que vivem no vale da Pedra do Rei. As nuvens abrem espaço para que a luz divina abençoe o filhote Simba. Os demais animais se curvam ao reconhecer o herdeiro do trono. Com a seleção muito inteligente de planos e aumentando o som da música gradativamente, os diretores conferem uma emoção inebriante para a cena. O que confere lágrimas ao seu pai, meu filho, é este momento em que o filho se torna o que de mais importante existe na vida dos geradores; é no momento particular em que o pequeno Simba espirra e é levado por Rafiki para ser abençoado pela luz divina que choro... Choro porque é ali que se compreende o que realmente importa quando se é pai, e tudo que se faz é em função dos filhos. Absolutamente tudo! E o amor próprio é uma mísera parte do amor paterno que se sente...



   Querido Théo, quando você veio ao mundo, logo me veio as frases iniciais em linguagem nativa (língua zulu) da música 'Circle of Life': 'Nants ingonyama bagithi Baba Sithi uhm ingonyama' (aí vem um leão, meu pai, sim, é um leão)... Além do trecho cantado e repetido em coro de vozes africanas: 'Ingonyama nengw' enamabala' (um leão e um leopardo vem para esse lugar aberto). Venha, Théo! Venha, Simba! O mundo é parte da mesma natureza que você... Vivamos cada passo de uma vez! Meu filho: 'Remember who you are. You are my son, and the one true king. Remember...' e 'Oh yes, the past can hurt. But the way I see it, you can either run from it, or... learn from it'.








Antes de você chegar, Théo!
Antes de você chegar, Théo!
Seu quarto, Théo!
Papel de parede no seu quarto, Théo!
   Querido Théo, não há como não enxergar você em alguns quadros do grande artista plástico francês William-Adolphe Bouguereau (1825-1905). Com grande domínio da forma e da técnica, representou com alta qualidade e acabamento supremo figuras infantis como ninguém - percebem-se elementos neoclassicistas e românticos em sua obra. Mas me chama a atenção simplesmente a contemplação de um de seus quadros, em que vejo você, meu príncipe, como vejo pessoalmente. Arte da maior qualidade!


   Ou como não enxergar você neste outro quadro, ainda que seja diferente a cor dos cabelos?


   Querido Théo, eu sou uma pessoa que respeita demais o papel que tem a Arte em nossas vidas, especialmente a sexta arte: a Literatura!!! Por falar em Arte, Literatura e príncipe, não é possível que algum ser humano passe por este planeta e não se sensibilize ou mergulhe profundamente nos grandes ensinamentos de um livro tão simples... Deixe-me contar algo sobre O Pequeno Príncipe!
   Querido Théo, o livro foi escrito por um francês, de nome Antoine de Saint-Exupéry. Nascido em Lyon em 1900, ele se considerava um piloto acima de tudo. Por vinte anos, ele voou por vários lugares tanto em missões de cartografia como em vôos comerciais, e o vôo ocupou um lugar significativo em seus ensaios filosóficos e escritos fantasiosos. O tema da aviação era frequentemente um ponto de partida para discussões mais abstratas em questões de busca por sabedoria e de significado da vida. Saint-Exupéry começou a escrever O Pequeno Príncipe durante a Segunda Guerra Mundial, após a invasão promovida pela Alemanha contra a França, o que obrigou o autor a abandonar a aviação e fugir para Nova Iorque. Além de seus pensamentos agonizantes com relação à guerra na Europa, ter que deixar sua terra natal e não mais ser capaz de voar afetou Saint-Exúpery profundamente. A nostalgia pela infância no romance indica tanto o desejo doentio do autor de voltar para casa como sua esperança em que as coisas voltassem a tempos de paz. Este estresse relacionado à guerra, pequeno Théo, sem dúvida contribuiu para o senso de urgência nas mensagens de amor e compaixão de Saint-Exupéry. Em sua glorificação da inocência como a da criança, O Pequeno Príncipe é também uma acusação do declínio espiritual que o autor percebeu na humanidade. Em 1943, ele escreveu: 'Por séculos, a humanidade tem descido uma imensa escadaria em que o topo está escondido entre as nuvens e os degraus mais baixos estão perdidos num abismo escuro. Nós podíamos ter subido a escada; em vez disto, escolhemos descê-la. O declínio espiritual é terrível... Há um problema e somente um no mundo: reviver nas pessoas algum senso de significado espiritual...' Ao celebrar uma visão de mundo imaculada das restrições monótonas dos adultos, o romance tenta reviver um senso de espiritualidade no planeta.

Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944)
   Querido Théo, algumas das estórias do romance usam eventos extraídos da vida do próprio autor. No livro, contos de fada surreais parecem estranhamente reais e pessoais. Este efeito é adquirido, ao menos em parte, pelo fato de que Saint-Exupéry estava desenhando de suas próprias experiências. Em Terra dos Homens, livro que relata suas experiências aventurosas com a aviação, ele se recorda de um pouso forçado que foi obrigado a fazer no deserto do Saara. Em suas andanças pelo deserto, o autor teve várias alucinações, incluindo um encontro com uma raposa do deserto característica daquele lugar, e esta lembra fortemente a raposa de O Pequeno Príncipe. Saint-Exupéry pode ter se visto em seus personagens, tanto o narrador como o pequeno príncipe. Como o narrador, Saint-Exupéry era um piloto, caiu no Saara e experimentou lá uma espécie de revelação mística. O príncipe, entretanto, representa aspectos do autor da mesma forma, e incorpora de forma muito definida a filosofia e as aspirações de Saint-Exupéry. A relação do príncipe com a rosa poderia ser um reflexo da relação do autor com sua esposa, e o príncipe é também um explorador e viajante dos céus, sendo uma das primeiras coisas que o príncipe e o narrador compartilham e têm em comum. Visto por este lado, O Pequeno Príncipe pode ser lido como uma metáfora do processo de introspecção em si, no qual duas metades da mesma pessoa se encontram e aprendem uma da outra. Embora o livro tenha sido indubitavelmente influenciado pelo tom da Segunda Guerra Mundial, Saint-Exupéry intenciona uma análise da natureza humana, mas apolítica e de uma forma geral. A prevalência de símbolos de morte e do mal no livro é frequentemente interpretada como referência ao nazismo alemão, mas os símbolos de contos de fada universalmente aplicáveis e os emblemas da Segunda Guerra Mundial fazem um jogo estranho. O Pequeno Príncipe se constroi sobre uma longa tradição de parábolas francesas e de literatura de fantasia, mais notavelmente expressa em Cândido, livro de Voltaire publicado em 1759. Como este filósofo, Saint-Exupéry solicita que seus leitores participem ativamente no processo de leitura, usando a sua imaginação para atribuir significado mais profundo à prosa e à poesia enganosamente simples. Saint-Exupéry e seu romance foram certamente afetados por eventos históricos em seu tempo, mas O Pequeno Príncipe aspira a ser uma alegoria universal e eterna da importância da inocência e do amor, meu filho. Na verdade, desde que foi publicado, o livro tem se tornado um dos livros mais traduzidos na história da literatura francesa.


   Querido Théo, no livro, o narrador, um piloto de avião, cai no deserto do Saara. O acidente danifica fortemente o avião e deixa o narrador com muito pouca comida e água. Enquanto ele se preocupa com a sua situação, ele é abordado por um pequeno príncipe, um pequeno garoto loiro muito sério que pede ao narrador para lhe desenhar um carneiro. O narrador é compelido e ambos acabam por se tornar amigos. O piloto descobre que o pequeno príncipe vem de um pequeno planeta chamado, por este, de Asteroide 325, mas as pessoas na Terra o chamam de Asteroide B-612. O principezinho cuida bastante do planeta, prevenindo qualquer semente má de crescer e tendo certeza de que o planeta nunca seja tomado por baobás. Um dia, uma rosa misteriosa brotou no planeta e o principezinho se apaixonou por ela. Mas quando descobriu que a rosa mentira um dia, ele decidiu que não poderia mais acreditar nela. Ele cresceu sozinho e decidiu partir. A despeito de uma reconciliação no último minuto com a rosa, o príncipe decidiu explorar outros planetas e curar sua solidão. Enquanto viajava, o narrador nos conta, o pequeno príncipe passa por alguns asteroides vizinhos e encontra, pela primeira vez, estranhos adultos com mente muito estreita. Nos primeiros seis planetas que visita ele encontra um rei, um homem vaidoso, um bêbado, um empresário, um acendedor de lampiões e um geógrafo, todos sozinhos e muito consumidos por suas ocupações escolhidas. Tal comportamento tão estranho tanto diverte como perturba o pequeno príncipe. Ele não compreende as necessidades que esses adultos têm de ordenar pessoas ao seu redor, de serem admirados e de possuir tudo. Com exceção do acendedor de lampiões, cuja fidelidade obstinada ele admira, o pequeno príncipe não pensa muito dos adultos visitados, e também não aprende nada de útil. Entretanto, ele aprende do geógrafo que as flores não duram para sempre, e ele começa a sentir saudade da rosa que deixara para trás. Por sugestão do geógrafo, o principezinho visita a Terra, mas ele pousa no meio do deserto e não consegue encontrar nenhum humano.
   Querido Théo, em vez de encontrar humanos, ele esbarra com uma cobra que fala por meio de charadas e que dá uma dica muito obscura com relação ao seu veneno letal, que afirma poder enviar o pequeno príncipe novamente de volta aos céus se ele, assim, desejar. O principezinho ignora a oferta e segue em sua exploração, acabando por parar para conversar com um flor de três pétalas e para escalar a montanha mais alta que ele encontra, onde ele confunde o eco de sua voz com uma conversa. Ele acaba encontrando, depois, um jardim de rosas, que o surpreende e o deprime - sua rosa o havia contado ser a única de sua espécie. Logo ele conhece uma raposa, de quem se torna amigo; ela o ensina que as coisas importantes da vida são visíveis somente ao coração, que seu tempo longe de sua rosa torna esta mais especial para ele, e que o amor torna uma pessoa responsável pelos seres que esta pessoa ama. O principezinho, Théo, percebe, então, que, embora existam muitas rosas, o seu amor por sua rosa a torna única e que, portanto, ele é responsável por ela. A despeito desta revelação, ele ainda se sente muito sozinho porque se encontra muito distante de sua rosa. O pequeno príncipe encerra sua história descrevendo seu encontro com dois homens, um manobreiro ferroviário e um vendedor.


   Querido Théo, agora o narrador se encontra há oito dias no deserto, e, por sugestão do principezinho, eles partem para encontrar um poço. A água alimenta os seus espíritos tanto quanto os seus corpos, e os dois compartilham um momento de felicidade suprema na medida em que concordam que muitas pessoas não enxergam o que é realmente importante na vida. A mente do principezinho, entretanto, está fixada em retornar para sua rosa, e ele começa a fazer planos com a cobra para voltar para o seu planeta. O narrador acaba consertando o avião um dia antes de o principezinho completar um ano na Terra, e o piloto caminha entristecido com seu amigo para o lugar onde este pousara. A cobra pica o principezinho, que cai silenciosamente sobre a areia... ;( O narrador, entretanto, conforta o seu coração um pouco quando ele não consegue encontrar o corpo do principezinho no dia seguinte, e está confiante no fato de que ele retornou para o seu asteroide. O narrador também se conforta por meio das estrelas, no meio das quais ele agora ouve o tilintar da risada de seu amiguinho. Frequentemente, entretanto, ele se entristece e se pergunta se o carneiro que ele desenhara comeu a rosa do principezinho. O narrador conclui a história mostrando aos leitores um desenho da paisagem do deserto em que estivera e clamando para que nós paremos por um instante se algum dia nos encontrarmos em tal paisagem ao passear pela África e para que nós olhemos para as estrelas e, se ao fizermos isto pudermos ver o principezinho, por favor contatá-lo imediatamente e dizer que o seu amigo voltou... Que bela história, não, Théo? É impossível ler as páginas do livro de forma tranquila, com o espírito em paz, com a mente leve, vazia, e não deixar cair algumas lágrimas... Ao lê-lo, lembramos prontamente do que importa ao nossos corações tão angustiados ao longo da vida: a amizade, a reciprocidade, o poder da inocência diante de verdades questionáveis e, acima de tudo, o amor... Não se engane, Théo: esta é uma história sobre o amor! E não será uma e nem serão duas vezes que você olhará para as estrelas numa noite fria no meio do deserto e escutará as risadas calorosas e douradas do principezinho... E isto deixará você feliz, porque, naquele momento, irá se lembrar do que realmente é importante em sua vida! Não se esqueça desta lição, meu filho! Jamais!
   Querido Théo, deixe-me falar um pouco sobre alguns personagens no livro. O primeiro deles é, obviamente, o principezinho. Ele é um personagem puro, inocente, viajante do espaço e o narrador o encontra no meio do deserto do Saara. Antes de pousar na Terra, o autor contrasta o personagem infantil com diferentes personagens adultos que o principezinho encontra em planetas pela vizinhança. Em cada planeta, o príncipe encontra um diferente tipo de adulto e revela a fraqueza e frivolidade do caráter destes. Uma vez na Terra, entretanto, o príncipe se torna um estudante ao mesmo tempo em que se torna um professor. De sua amiga raposa, o principezinho aprende o que implica o amor, e passa as lições adiante para o narrador da história. O pequeno príncipe tem poucas das falhas gritantes evidentes nos outros personagens, e ele é imediatamente apresentado como um personagem de alto calibre ao demonstrar sua habilidade de reconhecer o desenho número um do narrador como a figura de uma jiboia que engolira um elefante. No entanto, o medo do principezinho enquanto se prepara para ser enviado de volta ao seu planeta pela picada da cobra mostra que ele é suscetível às mesmas emoções que o resto de nós. Mais notavelmente, o príncipe se sente obrigado a retornar em virtude do amor pela rosa que ele deixou em seu planeta. Seu questionamento constante também indica que as perguntas e busca por respostas que fazemos podem ser mais importantes que as respostas em si mesmas. 


   Querido Théo, o narrador da história é um adulto em anos que rejuvenesceu seis anos atrás após ter caído no deserto. Ele era uma criança imaginativa cujo primeiro desenho era uma interpretação crítica de uma jiboia que engolira um elefante inteiro. Ele acaba abandonando a arte para se tornar um piloto, e ele vive uma vida de solidão, até que encontra o pequeno príncipe. O narrador acaba servindo como um confidente para o principezinho e nos retransmite a história deste, mas o piloto também passa por algumas transformações. Após ouvir a história do príncipe sobre o que este aprendera com a raposa, o narrador aprende a lição desta raposa ele mesmo sobre o que torna as coisas importantes quando eles procuram água pelo deserto. A busca do narrador pelo bem indica que as lições devem ser aprendidas através da exploração pessoal e não apenas de livros e de ensinamentos de outros. Tanto o narrador quanto o principezinho são protagonistas da história, mas eles diferem de maneira importante. Enquanto o príncipe é místico e sobrenatural, o piloto é um ser humano que cresce e se desenvolve ao longo do tempo. Quando o narrador encontra o príncipe pela primeira vez, ele não consegue compreender as verdades sutis que este apresenta àquele, enquanto o príncipe compreende instantaneamente as lições que o explorador ensina a ele. Estas deficiências do narrador o tornam um personagem que pode ser identificado com o ser humano mais facilmente que o extraterreno e extraordinário principezinho.
   Querido Théo, embora a rosa apareça apenas em alguns capítulos do livro, ela é crucial para a história como um todo, pois sua natureza orgulhosa e melodramática é o que faz o principezinho deixar seu planeta e começar suas explorações. Ainda, a memória que o príncipe mantém de sua rosa é o que desenvolve o desejo dele em retornar para o seu planeta. Como uma personagem que ganha significado por causa do tempo e esforço que o príncipe investe para cuidar dela, a rosa personifica a sentença da raposa de que o amor vem do investimento em outras pessoas. Embora a rosa seja, na maior parte do tempo, vã e ingênua, o príncipe ainda a ama profundamente por causa do tempo que despendeu a regando e dela cuidando. Meu filho, aliás, muito se tem escrito comparando a relação do pequeno príncipe com sua rosa com a relação entre Antoine de Saint-Exupéry e sua esposa, Consuelo, mas a rosa também pode ser interpretada como um símbolo do amor universal. Na Literatura, a rosa tem servido há muito tempo como um símbolo para os apaixonados, e o autor toma esta imagem num bom passo, dando à rosa do príncipe características humanas, tanto boas quanto ruins. Por causa da rosa, o príncipe aprende que o que é mais essencial é invisível, que o tempo que se fica distante da pessoa amada causa uma melhor apreciação daquele amor e que o amor gera responsabilidade, e todos estes ensinamentos são preceitos morais que obviamente se estendem para além da história pessoal do autor.


   Querido Théo, a raposa aparece subitamente e inexplicavelmente enquanto o príncipe caminha tristemente por causa de sua rosa ao mesmo tempo em que vê um jardim cheio delas. Quando a raposa se põe a estabelecer uma amizade com o principezinho, parece que instruir é o único propósito da raposa. Ainda, quando ela suplica ao pequeno príncipe para domá-la, a raposa parece ser um aluno e um instrutor ao mesmo tempo. Em suas lições sobre domar, a raposa argumenta sobre a importância de cerimônias e rituais, mostrando que tais ferramentas são importantes mesmo fora do estrito mundo dos adultos. Em seu encontro final com o príncipe, a raposa facilita a partida dele fazendo o pequenino entender por que sua rosa é tão importante para ele. Este encontro demonstra um tipo ideal de amizade porque mesmo que a partida do príncipe cause um grande pesar à raposa, ela se comporta de forma encorajadora, não egoísta, incentivando o príncipe a agir no seu próprio e melhor interesse.
   Querido Théo, por fim falarei da cobra. Mesmo que ela fale por meio de charadas, ela demanda menos interpretação que as outras figuras simbólicas no romance. A cobra também tem menos a aprender do que os outros personagens. Os adultos nos vários planetas são muito 'mente fechada' para o próprio bem, e o principezinho e o narrador estão mais próximos da iluminação, mas a cobra não requer respostas ou mesmo faz perguntas. De fato, ela é tão confiante que obteve o domínio dos mistérios da vida que diz ao príncipe que fala somente por meio de charadas porque ela pode resolver todos os problemas. Numa história sobre mistérios, a cobra é a única absoluta. Sua picada venenosa e a alusão bíblica indicam que ela representa o inevitável fenômeno da morte.


   Querido Théo, deixe-me tentar ensinar um pouco sobre o que está por trás de toda a história de O Pequeno Príncipe. Existem alguns temas que merecem discussão. São, na verdade, os ensinamentos do livro para a vida de todos nós. Um deles é o perigo da mente estreita; o livro expõe a ignorância que acompanha uma perspectiva incompleta e estreita. Por exemplo, no capítulo IV, quando um astrônomo turco apresenta sua descoberta do asteroide B-612, ele é totalmente ignorado por causa das roupas típicas que usava no momento da exposição de sua descoberta; anos depois, ele faz a mesma apresentação de sua descoberta, agora com roupas típicas europeias, e é fortemente aclamado. Porque a flor de três pétalas descrita no capítulo XVI passou toda a sua vida no deserto, ela incorretamente apresenta a Terra como tendo muito poucos humanos e que estes são pessoas sem raízes e à deriva. Mesmo os protagonistas do livro têm seus momentos de mente estreita. No capítulo XVII, o narrador confessa que sua descrição prévia da Terra focalizava muito nos humanos. No capítulo XIX, o principezinho confunde o eco de sua própria voz com a voz dos humanos e falsamente os acusa de serem muito repetitivos. Tais julgamentos tão rapidamente, a história argumenta, leva ao desenvolvimento de estereótipos e preconceitos perigosos. Eles também previnem o questionamento constante e a mente aberta que são tão importantes para uma vida bem ajustada e feliz. Na maior parte do tempo, o livro caracteriza a mente estreita como um traço dos adultos. Logo no início, o narrador traça um forte contraste entre as visões de mundo dos adultos e das crianças. Ele retrata os adultos como pessoas sem imaginação, sem graça, superficiais e como estando teimosamente certos de que a perspectiva limitada deles é a única possível. Já as crianças, por outro lado, são retratadas como imaginativas, com mente aberta, conscientes e sensíveis ao mistério e à beleza do mundo. O pequeno príncipe, na história, representa a mente muito aberta das crianças; ele é um andarilho que incansavelmente faz perguntas e deseja desvendar os invisíveis e secretos mistérios do universo. O romance sugere que tal inquietude é a chave para a compreensão e para a felicidade. Entretanto, o livro mostra que a idade não é o principal fator que separa adultos de crianças. O narrador, por exemplo, tem idade suficiente para ter esquecido como desenhar, mas ele é, ainda, suficientemente uma criança para compreender e fazer amizade com o jovem e estrangeiro príncipe.
   Querido Théo, é possível perceber outro tema: a iluminação através da exploração. É possível perceber que cada um dos personagens principais do romance tem fome tanto de aventura (exploração do mundo exterior) como de introspecção (exploração do interior do indivíduo). É através do encontro com o príncipe perdido no deserto desolado que o narrador solitário adquire uma nova compreensão do mundo. Mas em sua história das viagens do pequeno príncipe, o autor mostra que o crescimento espiritual deve também envolver exploração ativa. O narrador e o príncipe podem estar encalhados no meio do deserto, mas eles são, ambos, exploradores que fazem questão de viajar o mundo ao redor deles. Através de uma combinação da exploração do mundo com a exploração dos próprios sentimentos, o narrador e o pequeno príncipe acabam compreendendo mais claramente as suas próprias naturezas e seus lugares no mundo.


   Querido Théo, no livro é possível perceber, ainda, que os relacionamentos ensinam a ter responsabilidade. O romance ensina que a responsabilidade demandada pelos relacionamentos com os outros leva a uma maior compreensão e apreciação das responsabilidades das pessoas com o mundo em geral. A história do príncipe e sua rosa é uma parábola sobre a natureza do amor real e verdadeiro. Este amor do príncipe pela sua rosa é a força condutora por trás do romance. O príncipe deixa o seu planeta por causa da rosa; esta permeia as discussões do príncipe com o narrador e, mais adiante, a rosa se torna a razão pela qual o príncipe deseja retornar ao seu planeta. A fonte do amor do príncipe está em seu senso de responsabilidade com relação à sua amada rosa. Quando a raposa pede para ser cativada e domada, ela explica ao principezinho que investir em outra pessoa faz desta, e tudo associado a ela, mais especial. O Pequeno Príncipe mostra que o que uma pessoa dá a outra é mais importante do que aquilo que a outra pessoa dá em troca.
   Querido Théo, deixe-me falar agora, meu filho, de alguns motivos que podem ser apreciados no livro. Todas estas discussões são válidas para apreender tudo o que este belíssimo livro poderá ter ensinar ao longo da vida. Já foi dito que 'não lemos para nos divertir ou para nos tornarmos mais instruídos, mas para viver'. Então, vivamos... Bom, podemos perceber que um dos motivos é tudo o que é secreto. No coração da história está a sentença da raposa de que 'o essencial é invisível aos olhos'. Todos os personagens do livro que o principezinho encontra antes de chegar à Terra explicam, ansiosa e abertamente, tudo sobre suas vidas. Mas o príncipe acaba descobrindo, na Terra, que todos os verdadeiros significados são aqueles que estão escondidos. O primeiro personagem a cumprimentá-lo na Terra é a cobra, que fala somente em charadas. Nos capítulos seguintes, o narrador e o príncipe frequentemente descrevem os eventos como 'misteriosos' e 'secretos'. Esta escolha das palavras é crucial à mensagem do livro; descrever os mistérios da vida como quebra-cabeças ou questionamentos implicaria que respondê-los seria possível. O fato de que os eventos que ocorrem na Terra serem lançados como mistérios sugere que eles nunca poderão ser resolvidos completamente. Entretanto, esta ideia não é tão pessimista quanto pode parecer, meu filho. O romance assegura que, enquanto muitas questões na vida permanecem um mistério, a exploração do desconhecido é o que conta, mesmo que este não leve a respostas definitivas.
   Querido Théo, perceba que as ilustrações do narrador da história enfatizam a crença do autor de que as palavras têm limite e que muitas verdades desafiam a explicação verbal. O narrador coloca figuras no texto em certos pontos para explicar seu encontro no deserto, e, embora suas ilustrações sejam simples, elas são importantes para a compreensão do romance. Saint-Exupéry desafia as convenções de que as histórias deveriam ser somente textos e enriquece seu trabalho incluindo tanto figuras como palavras. Os desenhos também permitem ao narrador voltar para suas perspectivas perdidas da infância. Ele faz menção de que usou o seu desenho número um para testar os adultos que ele encontrara. O desenho é, na verdade, uma jiboia tendo engolido um elefante, mas, para a maioria dos adultos parece um chapéu. Se o personagem reconhece ou não o desenho como sendo um chapéu indica o quão 'mente-estreita' ele é. O narrador também faz menção várias vezes ao fato de que desenhar é muito difícil para ele porque abandonou esta prática aos seis anos de idade, após ter percebido que os adultos eram muito pouco receptivos aos seus desenhos. Assim, sua decisão de ilustrar sua história também indica seu retorno à inocência perdida da infância.


    Querido Théo, outro motivo que pode ser percebido no livro é o da domesticação. A história de Saint-Exúpery é preenchida por personagens que ou foram ou deveria ser domesticados. A raposa explica que domesticar, cativar, significa 'criar laços' com outra pessoa de modo que um se torne mais especial para a outra. O simples contato não é suficiente: todos os personagens que o príncipe encontra fora de seu planeta antes de chegar à Terra estão muito presos à rotina deles para estabelecer laços fortes com o príncipe. A raposa é o primeiro personagem a explicar que para se desenvolver uma verdadeira conexão com outra pessoa, alguns rituais devem ser seguidos, e as duas pessoas devem dar parte de si uma para a outra. De fato, o processo de domesticação é usualmente retratado como sendo mais trabalhoso para aquele que domestica em relação àquele que é domesticado. A despeito do trabalho e do envolvimento emocional requeridos, domesticar traz benefícios óbvios. A raposa explica que o significado do mundo ao redor dela será enriquecido porque o pequeno príncipe a cativou, a domesticou. Em contraste, o empresário que o príncipe encontra ainda antes de chegar à Terra não pode nem mesmo se lembrar do nome das estrelas que ele possui.
   Querido Théo, outro conceito discutido no livro é o dos 'assuntos sérios'. Este é exposto várias vezes no romance e, cada vez em que aparece, destaca a diferença entre as prioridades de adultos e crianças. Para os adultos, as questões importantes são aquelas relacionadas aos negócios e às necessidades mais básicas da vida. Por exemplo, o empresário que possui todas as estrelas se refere a si mesmo como uma 'pessoa séria', uma afirmação obviamente ridícula, meu filho, pois ele não faz nenhuma uso de sua propriedade e nem contribui para esta. Até mesmo o narrador expressa um desespero compreensível ao afirmar que consertar o motor de seu avião é mais importante do que ouvir às histórias do principezinho. Entretanto, o narrador logo admite que os problemas do motor se empalidecem diante das lágrimas do seu pequeno amigo. Saint-Exupéry claramente faz um paralelo com as crianças, representadas pelo pequeno príncipe, que acredita que os problemas importantes são aqueles da imaginação. Para este, a questão mais séria de todas é se o carneiro que o narrador desenhou para ele irá comer sua amada rosa. À medida em que a história progride, o narrador compreende a importância da preocupação do principezinho. O narrador, então, responde com compaixão à preocupação do príncipe sobre o carneiro do começo, deixando suas ferramentas de lado e indo consolar o seu pequeno amigo no capítulo VII, quando o principezinho enfatiza que a questão de se o carneiro irá ou não comer a sua rosa é muito mais importante do que o avião do narrador. Entretanto, em seu comentário final, o narrador diz que a questão do carneiro e da rosa é tão importante que esta acabou mudando sua visão do mundo, revelando que ele acabara entendendo a importância do questionamento ele mesmo.



   Querido Théo, os símbolos são algo muito importante também ao se analisar uma obra. Nos permitem perceber que tudo o que os grandes autores colocam em seus livros importam, ainda que possamos não perceber durante uma primeira leitura. Em O Pequeno Príncipe, alguns símbolos são muito evidentes... Um deles são as estrelas. Como um piloto, o narrador destaca a importância das estrelas porque depende delas para sua navegação. Após ter encontrado o principezinho, ele acaba descobrindo que as estrelas possuem um novo significado porque sabe, então, que o príncipe vive entre elas. As estrelas no romance também simbolizam o mistério dos céus distantes, a imensidão do universo, e, ao final da história, também simbolizam a solidão na vida do narrador. O desenho final do narrador, que acompanha o lamento de sua solidão, é o de uma única estrela pairando sobre a paisagem do deserto em que caiu o principezinho. Nesta imagem, a presença da estrela tanto destaca a ausência do príncipe como sugere sua presença constante. A estrela é também um lembrete do imenso e densamente povoado universo além da Terra que o príncipe contou ter visitado.
   Querido Théo, outro símbolo que pode ser extraído do romance é o do deserto. A história se passa no deserto do Saara, um lugar inócuo e estéril pronto para ser modelado pela experiência. O deserto é também um local hostil que não contém água e contém uma cobra com veneno mortal. Neste contexto, o deserto simboliza a mente do narrador. Feita estéril por ideias adultas, a mente do narrador vai se expandido gradativamente sob a condução do pequeno príncipe na mesma medida em que o mortal deserto aos poucos se transforma em um lugar de aprendizado e, uma vez que o bem aparece, de revigoração. Um outro símbolo interessante são os trens que aparecem no capítulo XXII. Eles representam os esforços fúteis que fazemos para tentar melhorar a nossa sorte. Os passeios dos trens são viagens que nunca resultam em felicidade porque, como o manobreiro informa ao príncipe, as pessoas nunca estão felizes onde estão. Além disto, os trens correm um para o outro a partir de direções opostas, sugerindo que os esforços dos adultos são contraditórios e sem propósito. Mais uma vez, são as crianças que compreendem a verdade. Elas enxergam que a jornada é mais importante do que o destino e pressionam seus rostos de forma faminta contra as janelas enquanto viajam, absorvendo todo o cenário.
   Querido Théo, outro símbolo pode ser percebido na água. Ao final da história, o ato de beber a água emerge como um símbolo de preenchimento espiritual. A preocupação do narrador em ficar sem água após sua primeira queda no deserto espelha sua queixa em ter envelhecido. Mais tarde, quando ele e o príncipe encontram seu bem misterioso, a água que o narrador bebe o lembra das festividades cristãs. Sua lembrança das cerimônias cristãs sugere que o seu espírito, e não o seu corpo, é o que realmente tem sede. O vendedor de pílulas para saciar a sede não obtém êxito com o principezinho, que revela que não há substitutos para o alimento espiritual verdadeiro. A pílula pode saciar o desejo, mas tem pouco a oferecer em termos de nutrição real. O príncipe declara que usaria os minutos economizados com a compra da pílula para se dirigir a uma fonte de água, o único preenchimento espiritual verdadeiro pelo que se deve esperar.






   Querido Théo, o livro nos ensina, de forma muito clara, que o mais importante sentimento que se pode desenvolver de forma honesta e verdadeira é o amor. Apesar de explicitamente se depreender o aspecto romântico em tudo o que foi escrito, é também muito clara a referência ao amor no sentido mais amplo do termo e num contexto mais rico do que se pode entender ao se deparar com a compreensão desta palavra. Na verdade, diria que o amor é o sentimento capaz de expressar a humildade nossa em relação à verdade em todas as coisas. Aprenda que se deve amar Deus acima de todas as coisas; mas diante de todas as outras coisas, estabeleça sempre um amor sincero de buscar a verdade, a honestidade e a sinceridade nos seus desejos mais profundos. Não ama aquele que dedica alguns segundos desatenciosos do seu dia àquilo que se diz amar; ama aquele que se dedica profundamente e sinceramente ao objeto de seu desejo mais honesto. Ame intensamente, mas ame verdadeiramente! Tudo o que você amar será cativado por você, e a reciprocidade não terá nenhum entrave... Assim, meu filho, você conhecerá a verdade em todas as coisas, e será, finalmente, livre e preenchido com o fogo sagrado que repousa em Bizâncio; lá, seu coração será devorado e se juntará à eternidade... Só então você será capaz de cantar o que passou, o que passa e o que virá! Que você, Théo querido, não precise chegar à velhice para que enxergue tudo isso...


   Querido Théo, gostaria de tentar lhe inspirar com uma última lição. Antes de dizer de qual se trata, tenha paciência comigo, meu filho, já que não fui dotado dos termos diretos e precisos de um Homero ou de um José Lins do Rego. Em sendo assim, deixe-me contar um pouco sobre coisas muito ruins que já aconteceram em nosso mundo... Nos idos de 1933, um indivíduo que apresentava em seu espírito mais o lado ruim e maléfico do que o da luz assumiu o poder num país chamado Alemanha e iniciou planos para aquilo sobre o que mais se escreveu ao longo dos tempos: guerra. Um dos objetivos deste indivíduo, que se chamava Adolf Hitler, era 'livrar' o mundo de grupos 'impuros': judeus, ciganos, homossexuais, deficientes, entre outros; iniciou-se, então, um grande genocídio na humanidade. Destes, o grupo mais perseguido foi o dos judeus, e são vários os eventos que contam das barbáries contra este povo. Com a invasão da Polônia em 1939 pelos alemães, dando início à Segunda Grande Guerra, os judeus já eram muito perseguidos, e as leis que vigoravam na Alemanha nazista (este se refere aos seguidores do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães) passaram a vigorar também nos territórios ocupados pelos germânicos. Na própria Polônia ocupada, os judeus passaram a ser obrigados a usar 'braçadeiras' com a Estrela de Davi para que pudessem ser facilmente identificados. Logo foram forçados a deixar suas casas nas cidades e a habitar campos de concentração afastados do resto da população. A partir deste momento, posso falar de um filme que muito marcou a vida e as inspirações do seu pai: A Lista de Schindler. O gueto da Cracóvia, apresentado no filme, cobria dezesseis quadras e era povoado por aproximadamente vinte mil judeus. Na época, estes eram obrigados a trabalhos forçados e alguns era assassinados por unidades móveis de execução. Por volta de 1941, a 'Solução Final' foi implementada no sentido de se exterminar todos estes grupos pela Europa. Atualmente, isto permanece sendo um dos períodos mais negros e sombrios da história da humanidade. Os nazistas evacuaram os guetos de forma violenta e mandaram muitos judeus para alguns campos de concentração para que morressem em câmaras de gás; um destes campos era o de Auschwitz.
   Querido Théo, um dia você irá crescer e entenderá que algumas coisas precisam ser ditas e que somente o conhecimento da verdade conforta a alma. Não há outra forma de passar algumas informações muito sérias, meu filho. Saiba que os corpos dos assassinados eram cremados em grandes fornos, frequentemente fazendo o céu acima dos campos de concentração e arredores ficar negro por causa da fumaça densa, com as cinzas dos humanos caindo como neve... Durante este período sombrio e aterrorizante na Cracóvia, Oskar Schindler (1908-1974), um aproveitador em tempos de guerra e mulherengo, salvou a vida de aproximadamente mil e cem judeus que trabalharam para ele. Estes passaram a se autodenominar 'os judeus Schindler'. Avaliando que os nazistas assassinaram milhões de pessoas durante o holocausto, mil e cem podem parecer até insignificantes em número, mas, meu filho, este número representa mil e cem vidas humanas, todas que poderiam ter deixado de existir se não fosse por Schindler, e estes mil e cem originaram aproximadamente seis mil descendentes. A despeito da esmagadora escala do holocausto como um todo, a poderosa história dos 'judeus Schindler' e do homem que arriscou a vida e riqueza próprias para salvar suas vidas persistiu ao longo dos tempos.
   Querido Théo, a história particular destes judeus comoveu profundamente um diretor muito famoso nos Estados Unidos da América: Steven Spielberg. Criado por pais judeus, este disse que havia perdido muito de sua identidade judia quando adulto, mas que acabou adquirindo uma renovação em termos de herança enquanto desenvolvia as pesquisas para o seu premiado, inspirador, comovente e contundente filme A Lista de Schindler. Após visitar Auschwitz, a enorme responsabilidade do seu projeto se tornou muito clara; ele entendeu que para ajudar as pessoas a digerirem e entenderem um evento tão grande e incompreensível como o holocausto, ele tinha que explorar as histórias no tocante pessoal. As suas intenções enquanto diretor eram educar as pessoas com relação ao holocausto, silenciar aqueles que negam que o holocausto tenha sequer ocorrido e tornar como certo que as pessoas nunca se esqueçam deste evento histórico tão negro para a humanidade e garantir que o mesmo jamais venha a se repetir. Quando estreou por volta de 1993, o filme foi amplamente aclamado pela crítica. Entre os diversos prêmios recebidos pelo filme, estavam o Oscar de melhor filme e o Oscar de melhor diretor.

Oskar Schindler (1908-1974)
Steven Spielberg
   Querido Théo, o filme A Lista de Schindler se inicia com uma cena em que mãos acendem um par de velas no Sabbath, seguida por uma oração em hebraico a abençoá-las. Esta cena, uma das pouquíssimas filmadas em cores no filme, se encerra enquanto a chama se apaga. A nuvem de fumaça das chamas que se apagam se esvai na cena seguinte, agora em preto e branco, e se torna a nuvem de fumaça de um trem a vapor. Uma mesa dobrável é instalada na plataforma do trem, onde uma família judia se registra como tal. Várias mesas e várias famílias acabam por se configurar na cena, e tem-se uma multidão de judeus que se registram. Os nomes sendo digitados nas máquinas de escrever, apresentados em close, dão uma noção do vasto número de judeus chegando à Cracóvia. Oskar Schindler aparece num quarto de hotel nesta cidade. Seu rosto não é mostrado, e o foco da câmera é nas suas posses. Ele pões seu relógio caro, as abotoaduras, seu broche do partido nazista e pega uma grande quantia em dinheiro e, então, vai a um clube noturno. Uma vez sentado, um oficial nazista sentado numa mesa próxima chama a sua atenção. Tentando cair nas graças dos militares nazistas que também ali estavam no sentido de obter lucros seguros com contratos de guerra, Schindler manda bebidas para as mesas em que eles estão, isto gradativamente. Logo, ele está numa grande mesa com vários nazistas bebendo, comendo e cantando. Ele tira foto com todos os indivíduos importantes na mesa, bem como com dançarinas do clube. A seguir, Schindler visita o Conselho Judaico que está executando ordens nazistas na Cracóvia. Ele se dirige rapidamente para o início de uma fila aparentemente sem fim de judeus; lá, encontra o contador Itzhak Stern. Schindler diz a este que precisa de investidores 'judeus' para ajudá-lo a comprar uma fábrica de esmaltes; já que os judeus não podem, por lei, ter negócios próprios, Schindler diz a Stern que ele irá pagar aos investidores em produtos, não em dinheiro. Aproveitador, Schindler sabe que irá maximizar seu lucro já que não precisa pagar aos investidores judeus em dinheiro. Ele também quer que Stern gerencie o seu negócio, mas este inicialmente recusa a oferta, dizendo a Schindler que os judeus não irão se interessar em investir. Schindler, entretanto, não desiste. A seguir, visita uma igreja, onde encontra judeus contrabandistas realizando negócios. Todos os contrabandistas, exceto um de nome Poldek Pfefferberg, estão temerosos com a sua presença. Schindler diz a Pfefferberg que irá precisar de muitos itens de luxo nos próximos meses, e este promete consegui-los. Na cena seguinte, uma massa de judeus caminha sobre uma ponte. As braçadeiras se destacam nitidamente. É dia 20 de março de 1941 - o dia limite para a entrada dos judeus no gueto. Uma pequena garota polaca que está nas ruas grita 'adeus, judeus' várias e várias vezes. Enquanto Schindler chega ao seu novo e luxuoso apartamento, recentemente desapropriado da família judia Nussbaum, os próprios Nussbaum chegam ao gueto com milhares de famílias desabrigadas.
   Querido Théo, Schindler finalmente garante dinheiro dos investidores judeus, que concordam em aceitar produtos como pagamento, pois o dinheiro não terá valor dentro do gueto. Schindler inicia sua fábrica com a ajuda de Stern e contrata judeus, ao invés de polacos, porque aqueles custam menos. Os trabalhadores de sua fábrica passam a ser conhecidos como 'essenciais', um status que os salva de serem removidos para os campos de concentração e morte.  Stern reconhece tal fato imediatamente e enche a fábrica de trabalhadores judeus que os nazistas teriam considerado dispensáveis. Até este ponto do filme, meu filho, Schindler não está atento ao fato de que Stern está usando sua posição na fábrica para salvar pessoas. Sua consciência para este fato começa a surgir, entretanto, quando Stern traz um homem que tem um braço amputado para ver o patrão e agradecer-lhe por tê-lo salvo ao considerá-lo um trabalhador 'essencial'. Schindler dispensa a gratidão e briga com Stern por ter trazido aquele homem para vê-lo. Pouco tempo depois da bronca, o próprio Schindler tem que resgatar Stern de um trem que partiria com ele dentre os judeus em direção a um campo de concentração. Enquanto isto, começa a construção do campo de trabalhos forçados em Plaswoz, e Amon Goeth aparece na história. Este é um nazista sádico que é encarregado de construir e dirigir o campo. Quando Plaswoz está completa, os judeus são expulsos do gueto da Cracóvia e enviados àquele campo. De uma colina no alto do gueto, Schindler e sua namorada observam a destruição. Ele vê uma garotinha com um casaco vermelho - a única cor que aparece que não o preto e o branco ao longo do filme - caminhando por entre a carnificina. A namorada de Schindler em lágrimas implora para voltar para casa, e Schindler está visivelmente tocado e então muda com o que está vendo. Schindler convence Goeth a permitir àquele construir seu próprio 'subcampo' para abrigar seus trabalhadores.


   Querido Théo, Schindler começa a se empenhar ativamente para salvar os judeus quando Regina Perlman, uma garota judia, visita o seu escritório. Ela implora para que Schindler contrate os pais dela porque ouviu falar que a fábrica dele é um paraíso para os judeus. Ele se recusa a ajudá-la e a manda embora. Mais tarde, ele grita com Stern dizendo que não está no ramo de trabalho de salvar pessoas, mas quando termina sua bronca, ele dá a Stern seu relógio de ouro e pede para que traga os Perlman para a sua fábrica. Com esta decisão, ele começa ativamente a salvar os judeus. Ao longo do tempo, Schindler dá a Stern mais e mais de seus itens pessoais para usar como suborno para trazer judeus para sua fábrica. Algum tempo depois, Goeth é encarregado de evacuar Plaszow e exumar e queimar os corpos de aproximadamente 10 mil judeus que lá e no gueto da Cracóvia foram assassinados. Schindler percebe que seus trabalhadores, inclusive o próprio Stern, enfrentam a morte certa nas mãos dos nazistas, e então decide gastar sua fortuna para salvar o máximo de judeus que puder. Com isto, Schindler começa a fazer sua lista. Ele persuade Goeth a vender-lhe seus trabalhadores, bem como a doméstica que trabalha para este, Helen Hirsch, para que esta trabalhe em sua fábrica na Tchecoslováquia. Os homens e as mulheres são transportados, em trens separados, para aquele país; entretanto, o trem com as mulheres é levado, inadvertidamente, para Auschwitz, onde Schindler é obrigado a comprá-las novamente. Os homens e as mulheres são reunidos na fábrica, agora na Tchecoslováquia, onde eles permanecem até o fim da guerra. Quando a guerra tem fim, Schindler diz aos seus trabalhadores que eles agora estão livres, mas que ele será caçado como criminoso de guerra por ter feito parte do partido nazista e que precisará fugir à meia-noite. Quando ele dá adeus aos 'judeus Schindler', estes o entregam um anel (feito com o ouro de um dente de um dos trabalhadores da fábrica) em que está escrito uma frase do Talmude: 'Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro.' Schindler, numa das cenas mais comoventes e bonitas do filme, chora desconsoladamente falando que poderia ter salvo mais vidas se tivesse feito mais sacrifícios. Ele é consolado por Stern e por outros dos judeus e, a seguir, ele e sua esposa fogem num carro. Na manhã seguinte, um soldado russo entra no campo e diz aos judeus que eles estão livres. Enquanto eles caminham para uma cidade próxima, a cena se dissolve numa outra em cores e revela um grupo de sobreviventes reais do holocausto caminhando sobre um campo. Eles se alinham, muitos acompanhados pelos atores que participaram do filme os interpretando, e colocam uma pedra sobre o túmulo de Schindler. A última pessoa que chega ao túmulo é o ator que interpretou Oskar Schindler, Liam Neeson. Ele coloca uma rosa sobre o túmulo.


   Querido Théo, deixe-me contar um pouco mais dos principais personagens do filme. O primeiro deles, obviamente, é o próprio Oskar Schindler. Este foi um aproveitador da guerra, mulherengo e membro do Partido Nazista, mas se torna um heroi improvável e salvador de aproximadamente 1100 judeus polacos durante o holocausto. Ele é, em essência, um vigarista e um empresário de moderado sucesso que reconhece o potencial de lucrar num período de guerra. Compra uma fábrica de esmalte de propriedade anterior judia e se utiliza de subornos e bajulações para conseguir contratos militares para fornecer suprimentos de guerra. No começo de sua saga com o objetivo de se tornar rico, ele é indiferente à situação dos judeus, a qual vê como um mero resultado infeliz da guerra. Um playboy com um ego bastante enaltecido, Schindler frequentemente engana a sua esposa e se une ao Partido Nazista, não por razões ideológicas, mas porque isto o irá ajudar a conseguir mais dinheiro. Embora tenha comprado a fábrica após esta ter sido confiscada dos judeus e ter conseguido um apartamento de luxo desapropriado de outros judeus, Schindler não sente remorso e não avalia as origens de sua fortuna. Schindler, inicialmente preocupado somente consigo mesmo e com o sucesso do seu esquema para ganhar dinheiro, passa por uma mudança que o faz gastar toda a fortuna para salvar as vidas daqueles que ele uma vez explorou. Suas motivações não são completamente claras (na realidade, o Schindler real nunca revelou suas motivações). Entretanto, o filme sugere que pelo menos um dos incentivos era óbvio: Schindler não podia simplesmente ficar sentado e ver pessoas que ele conhecia serem enviadas para a morte. Sua metamorfose de um homem indiferente para um homem de compaixão acontece gradativamente ao longo de várias cenas. O respeito por seu contador, Itzhak Stern, provavelmente tem um grande papel em sua transformação; outro fator que tem grande papel é a sua testemunha da evacuação do gueto da Cracóvia, quando ele vê a garotinha com casaco vermelho. Mas as motivações de Schindler podem ter sido menos altruísticas: é possível que seu próprio ego e narcisismo o tenham levado a ser um salvador. Ele inicialmente reage de forma agressiva à ideia de que sua fábrica seja conhecida como sendo um paraíso para os judeus, mas talvez tenha começado a se enamorar da ideia de se tornar um heroi. As necessidades de seu ego podem, em alguma medida, ter superado suas necessidades materiais. Mas, sinceramente, quaisquer que tenham sido as reais motivações de Schindler, os efeitos supremos de suas escolhas são inegáveis.

Liam Neeson
Oskar Schindler
   Querido Théo, outro personagem importante do filme é Itzhak Stern. Ele é brilhante, tem um certo orgulho e é determinado, trazendo à tona o lado moral de Schindler; a atitude de Stern em relação a Schindler reflete a mudança deste ao longo do filme. O contador reconhece imediatamente a insensibilidade e a ganância de seu patrão; inicialmente, Stern expressa desdém por Schindler e por sua indignação controlada em sua oferta inicial para ter aquele como gerente da fábrica e para garantir os investidores judeus. Ele se recusa a beber com Schindler, deixando claro que ele não aprova a moral deste. Mas as atitudes de Stern vão se suavizando à medida em que Schindler se torna um participante ativo na missão de salvar os judeus que ele puder, e ele acaba enxergando o lado bom em seu patrão. Ele finalmente toma um drinque com Schindler quando os dois se dão adeus após descobrir que o campo de Plaszow irá fechar e o patrão percebe que Stern será, certamente, enviado para a morte. Ao aceitar o drinque, Stern demonstra seu respeito por Schindler, e este aceita a finalidade do provável destino daquele. Stern, como Schindler, é um oportunista e o cérebro por trás do resgate dos judeus. Ele é aquele que descobre um forma de canalizar os trabalhadores para que estejam sob a tutela de Schindler e, assim, acabar ajudando seus pares judeus. Schindler não trabalha, deixando com Stern a direção da fábrica, e este imediatamente começa a trazer trabalhadores judeus para a empresa para que estes não sejam considerados 'não essenciais' e não sejam, portanto, assassinados. Ele falsifica documentos para que professores e intelectuais aparentem ser maquinistas experientes e operários da fábrica. As motivações de Stern, para ajudar seu povo, são muito claras. Os traços que demonstram a missão do personagem de Stern faltam ao personagem de Schindler até mais tarde no filme; embora Schindler acabe tornando o resgate dos judeus possível ao utilizar suas conexões e recursos financeiros, Stern desempenha um papel tão grande quanto o do patrão. Stern coloca o 'motor em funcionamento', transformando a fábrica num paraíso para os judeus da Cracóvia antes de Schindler sequer perceber o que está acontecendo.

Ben Kingsley
Itzhak Stern
   Querido Théo, um último personagem do filme que vale ser analisado é o maléfico Amon Goeth. Sádico e cruel, ele representa o mal do Partido Nazista. Goeth encontra uma saída sancionada para sua crueldade no âmbito militar nazista e é muito representativo do mal irracional do Terceiro Reich e de sua 'solução final'. Ele enxerga os judeus como parasitas, como criaturas não merecedoras de possuir direitos humanos básicos. Ele mata frequentemente e sem hesitação ou sem ser provocado. Diferente de Schindler, Goeth nunca se desvia para a bondade. Entretanto, a ausência de mudança em sua natureza básica não o torna um personagem unidimensional; Goeth é complicado e conflituoso. Ele cobiça sua empregada judia, Helen Hirsch, e é possível perceber tanto a força como a ambivalência desta paixão. Goeth tenta seduzir Helen e quando esta não demonstra qualquer reação, ele se vira para ela, a culpa por tentar seduzi-lo, chama nomes e bate nela selvagemente. Mais tarde, quando Schindler tenta comprar Helen, Goeth se recusa a vendê-la. Ele diz a Schindler que jamais a irá deixar partir, que pretende levá-la para Viena e que deseja envelhecer ao lado dela. Schindler diz para ele que isto nunca irá acontecer, e Goeth, exibindo seus sentimentos conflituosos, rebate que ele nunca permitiria que Helen fosse para Auschwitz, e que a mataria com um tiro na cabeça, em 'misericórdia', em vez disto. A ideia distorcida da misericórdia de Goeth em relação a Helen simboliza tanto o seu conflito interior como sua crueldade em essência.




Ralph Phiennes
Amon Goeth
   Querido Théo, é possível perceber claramente algumas mensagens muito fortes no filme. Que temas estão absolutamente presentes, meu filho? Um é, sem dúvida, o triunfo do espírito humano. Veja: diante do mal avassalador, os judeus em A Lista de Schindler exibem um espírito inquebrantável e vontade de sobreviver. A senhora Nussbaum, tentando apreciar a situação da melhor forma possível, da mesma forma que os outros judeus forçados a viver no gueto, diz ao marido que o apartamento em que eles se encontram no gueto poderia ser pior. Os trabalhadores da fábrica de Schindler acreditam que eles podem estar a salvo nesta fábrica e continuam a manter a esperança da sobrevivência. O evento que talvez melhor ilustre este triunfo do espírito é o casamento no campo de Plaszow. Embora os judeus em Plaszow vivam em constante medo da morte, inclusive por causa dos tiros aleatórios do chefe frio do campo, Amon Goeth, duas pessoas conseguem se apaixonar. Com possivelmente nenhum futuro para onde se olhar, eles se casam na esperança de que sobrevivam. Uma mulher no local pede desculpa a Deus pela realização da cerimônia uma vez que ela não é um rabino, mas explica que em tempos de desespero são necessárias medidas desesperadas, e que a união do casal é, em última análise, o que conta. O noivo esmaga uma lâmpada com seu pé à conclusão da cerimônia (uma substituição improvisada da tradicional taça de vinho). Não somente o casal tem seu casamento firmado como mantém a fidelidade às tradições judaicas, o que simboliza a esperança pela sobrevivência do povo judeu.
   Querido Théo, outro tema que se observa é o da diferença que um indivíduo pode fazer. Os mais de seis mil descendentes dos 'judeus Schindler' poderiam nunca ter nascido se um homem não tivesse escolhido tomar uma posição contra o mal. O Terceiro Reich sancionou e encorajou violência contra os judeus e buscou a destruição final deste povo, e milhões de cidadãos do Terceiro Reich ou ficaram de braços cruzados ou ativamente incentivaram esta perseguição. Em A Lista de Schindler, na medida em que os judeus da Cracóvia são forçados a ir para o gueto, uma pequena garota nas ruas grita incansavelmente: 'Adeus, judeus'. Ela representa a hostilidade frequentemente demonstrada aos judeus por seus conterrâneos; afinal, a pequena garota não continha este ódio em essência, mas aprendeu isto. Através dela, o diretor do filme envia uma mensagem de que o mal imerso na 'solução final' infectou comunidades inteiras. Embora algumas pessoas tenham tentado ajudar seus amigos e vizinhos judeus, muitos foram os que se recusaram a ajudar, temendo represálias, e alguns até mesmo denunciaram seus vizinhos judeus. Qualquer uma destas pessoas poderia ter feito uma diferença nas vidas dos judeus, mas quase nenhuma optou por fazê-la. Oskar Schindler arriscou sua vida e se manteve sozinho contra o mal esmagador do Partido Nazista. A ideia poderosa de que um homem pode salvar a vida de outra pessoa está por trás do filme inteiro.


   Querido Théo, um último tema que vale ser analisado é o da perigosa facilidade da negação. Os judeus no filme, mesmo quando são forçados a ir para o gueto e posteriormente para os campos de concentração, sofrem de uma negação de sua real situação. Esta negação afligiu muitos judeus europeus que foram vítimas do holocausto. Eles tinham suas casas no campo e se mudaram para a Cracóvia e, posteriormente, para o gueto porque os nazistas os forçaram a isto. Uma vez no gueto, entretanto, eles acreditam que os tempos difíceis irão passar. A negação para eles de sua real situação continua no campo de concentração, mesmo quando a morte os rodeia. Um bom exemplo da negação ocorre na cena em que Mila Pfefferberg diz às outras mulheres no dormitório sobre os rumores que ouviu sobre os campos de morte em Auschwitz. Ela diz às mulheres como os judeus são asfixiados até a morte, em massa, e que seus restos são cremados. As mulheres respondem com uma negação quase irritada, dizendo que algo desse tipo certamente não poderia acontecer. Entretanto, os atores conseguem transparecer o fato de que, no fundo, as mulheres suspeitam da verdade. Elas sofreram muitos horrores até aquele momento para acreditar que o extermínio em massa é uma possibilidade.
   Querido Théo, deixe-me agora escrever um pouco sobre os motivos do filme. Um deles são as listas. Estas dominam as vidas dos judeus da Cracóvia no filme. Cedo em A Lista de Schindler, as cenas em 'close' sobre os nomes sendo datilografados nas listas do registro dos judeus na Cracóvia demonstram o vasto número deles forçados para dentro da cidade. Mas esta primeira lista apenas 'arranha' a superfície do perigo e da destruição. As listas se tornam cada vez mais sinistras durante exercícios de classificação para determinar quem está apto ou quem não está ou quem é 'essencial' ou não. Aqueles considerados 'não essenciais' são colocados na lista para serem evacuados para os campos de extermínio. O nome de Stern aparece numa lista para enviá-lo para Auschwitz. Quando Schindler o salva, um oficial da SS menciona que não importa que judeu sobe ou não no trem, e que manter o controle dos nomes significa apenas mais papelada. Este desrespeito pelos nomes e particularidades simboliza a extensão a que os nazistas desumanizaram os judeus. A lista de Schindler é uma que salva vidas. As listas dos nazistas representam o mal e a morte, mas a lista de Schindler representa o bem de forma pura e a vida. Em uma reviravolta irônica, a lista final do filme é uma lista que os trabalhadores de Schindler dão a este; é uma lista que contém as assinaturas de todos eles atestando que Schindler é um homem bom, de forma a ajudar este se soldados aliados o capturarem. Os que foram salvos acabam se tornando salvadores.


   Querido Théo, outro motivo são os trens. Estes eram componentes integrais logísticos do holocausto. Os judeus eram enviados aos campos de extermínio em trens de gado como carga. No filme, os primeiros judeus chegam à Cracóvia de trem e se registram como tais na plataforma. Quando Stern é resgatado de um trem cheio que levava pessoas para Auschwitz, milhares de outros judeus são vistos no trem, 'empacotados' nos vagões como sardinhas. Em uma cena, Schindler implora Goeth a jogar água dentro dos vagões num dia quente para ajudar os judeus desidratados dentro. Goeth diz a ele que isto daria falsas esperanças a eles, uma clara implicação de que os trens levavam os judeus para as suas mortes. Quando os 'judeus Schindler' são transportados para a nova fábrica de Schindler na Tchecoslováquia, os homens viajam num trem e as mulheres noutro. Neste caso, os trens significam esperança e vida, já que estão levando seus ocupantes para um paraíso seguro. Mas o trem das mulheres se torna um trem da morte quando elas são levadas para Auschwitz, onde a intervenção de Schindler as salva do extermínio. As mulheres embarcam em um trem seguro, mas enquanto ela partem, mais trens chegam ao campo. O ciclo de morte parece não ter fim.
   Querido Théo,  é válido ainda comentar sobre um último motivo, o da morte. A morte e o medo dela governam as vidas dos judeus em A Lista de Schindler. Imagens de morte permeiam o filme, geralmente em forma de execuções, quando pessoas são baleadas na cabeça, geralmente de forma indiscriminada. Este método de execução é usado mais e mais. O homem amputado que agradece Schindler por tê-lo empregado e o tornado 'essencial' é baleado na cabeça por um oficial da SS enquanto na neve; o sangue jorra de sua cabeça, manchando a neve ao redor. Em outra cena, Goeth ordena a execução de uma engenheira judia que fala a ele de um erro fatal de construção; o sangue dela também mancha e escurece a neve ao redor. O sangue jorrando das cabeças das vítimas representam tanto literalmente como metaforicamente a essência da raça judia sendo esvaída. Ainda, em outra cena, Goeth tenta executar um rabino trabalhando no campo de Plaszow; o rabino se ajoelha e Goeth tenta várias vezes atirar na cabeça daquele, mas a arma falha, e o rabino é poupado, simbolizando a proteção tênue que os 'judeus Schindler' tinham e a linha tênue entre a vida e a morte.

  


   Querido Théo, vamos tentar enxergar alguns símbolos no filme. Um deles é, sem dúvida alguma, o da garotinha com o casaco vermelho. Este é, na verdade, um dos símbolos mais óbvios no filme, pois o casaco dela é o único objeto colorido (além das velas do Sabbat) apresentado no corpo geral do filme. Para Schindler, ela representa a inocência dos judeus sendo sacrificada. Ele a vê do alto de uma colina e é absorvido por ela, quase ficando absorto da violência ao redor. O momento em que Schindler é absorvido pela visão da garotinha de vermelho marca o momento em que ele é forçado a confrontar os horrores da vida dos judeus durante o holocausto e o seu próprio papel nestes horrores. A garotinha também tem um grande significado social. Seu casaco vermelho sugere a 'bandeira vermelha' que os judeus acenaram para as forças aliadas durante a Segunda Grande Guerra como um grito de socorro. A garotinha caminha pelo meio da violência durante a evacuação como se ela não pudesse ver tudo aquilo, ignorando a carnificina ao redor dela. O esquecimento dela reflete a falta de ação das forças aliadas no sentido de ajudar os judeus. Schindler, mais tarde, a vê numa pilha de corpos mortos e a morte dela, mais uma vez, representa a morte da inocência.
   Querido Théo, um outro símbolo interessante é o da via pavimentada com lápides judias. O caminho através do campo de Plaszow, pavimentado com lápides extraídas de cemitérios judeus, é uma réplica de uma estrada real que lá existiu. Esta estrada acrescenta acurácia histórica ao filme, mas também simboliza a destruição do povo judeu. A remoção das lápides de cemitérios judeus representa a enormidade do holocausto. Insatisfeito com o simples extermínio dos judeus existentes, Goeth, ao planejar a estrada, nega o reconhecimento de muitos lugares de descanso final dos judeus. Ao remover as lápides, Goeth apaga a existência dos mortos. Além disto, Goeth força os judeus do campo a construirem a estrada, esfregando na cara destes que, em breve, também serão apagados da existência. A mensagem é clara: os nazistas enxergavam os judeus como nem mesmo tendo direito a lápides, querendo somente apagá-los da história da existência.
   Querido Théo, um último símbolo é percebido nas pilhas de itens pessoais. Numa das cenas mais bruscas do filme, judeus são embarcados em vagões de um trem enquanto uma voz diz para eles deixarem suas bagagens na plataforma que estas irão seguir num trem separado. A bagagem, entretanto, não irá segui-los. Em vez dito, os nazistas levam as bagagens para um saguão onde elas são despejadas e os conteúdos organizados. Este saguão contém pilhas e mais pilhas de pertences pessoais dos judeus, incluindo fotografias, sapatos, escovas de cabelo, roupas, etc., tudo separado para processamento. Em uma mesa, está sentado um grupo de joalheiros judeus, forçados a organizar e determinar o valor do ouro, da prata e das joias pertencentes àqueles que foram no trem. Estas pilhas simbolizam os milhões de vidas que foram perdidas, não somente as vidas no sentido físico, mas a essência das vítimas, que foram estripadas de suas identidades. Mil escovas de cabelo representam mil vítimas, mil vidas.




   Querido Théo, o que queria que você pudesse entender diante de tudo isto que falei sobre A Lista de Schindler é que algumas vezes na vida, já sem a presença de seus pais, você poderá ter que superar a realidade ao seu redor. Veja: quando envolto em mares tumultuosos, convivendo em meio a uma realidade demoníaca e infernal, você deverá deixar que surja, de dentro de você, a entidade heroica. Só vencerá o mal enquanto entidade demoníaca, que existe, aquele que se fizer surgir heroi. E não estou aqui, meu filho, querendo incutir-lhe de inspirações hipócritas; não. Espero que desde a aurora de sua vida compreenda que o bem e o mal existem como polos dentro de cada um de nós, e podemos nos comportar de uma forma ou de outra ainda que num mesmo corpo; todos são assim. Não estou tentando lhe ensinar que a vida de santidade é a verdadeira; muito poucos irão conseguir imitar, de fato, a vida do maior homem que existiu: o nosso Jesus Cristo. Perceba que Oskar Schindler não era detentor sempre de qualidades virtuosas, e que, em um momento quando não estava mais sob o manto protetor de seus pais, e em uma realidade absolutamente demoníaca, ele soube se superar como o heroi da sua própria realidade, e isto lhe rendeu muitas vidas salvas. Em um determinado momento da vida dele, nada mais fazia sentido se não salvar o máximo de pessoas que pudesse em sua condição naquele meio. É disto que se trata: chegará um momento em sua vida que haverá um chamado - saiba, acima de tudo, atender a este chamado com uma profunda sinceridade. Desconfio muito que seus feitos, neste momento em que, torço, você atenderá a este chamado com a bomba propulsora incansável e incessante que guardamos no peito, não ecoem pela eternidade. E quando você se encontrar com o criador, rezo (neste momento, espero que eu já me encontre para lá da nebulosa de Órion) para que perceba, enfim, que não importa se vivemos tantos ou poucos anos, se tivemos em abundância ou em escassez, mas se atendemos ao chamado da vida com profunda sinceridade... Infelizmente, muito poucos transcenderão seus espíritos à eternidade, e muitos dos que crêem realmente estarem vivendo plenamente mas se preocupando com coisas irrisórias e mesquinhas que não levamos deste mundo irão ter seus nomes para sempre esquecidos depois de duas ou três gerações... E desaparecerão como lágrimas na chuva... Seja o heroi, meu filho! Seja o heroi!!!




   Querido Théo, são tantas coisas que gostaria de te ensinar, mas tenho plena consciência de que quem acabará ensinando as coisas mais importantes serão suas próprias angústias, o curso nem sempre reto rumo ao nosso destino supremo. Mas entenda que não há forma correta de se viver, porque sempre iremos fazer coisas das quais iremos nos arrepender cedo ou tarde; alguns sofrimentos serão sinceros, outros nem tanto. O certo é que todos que o julgarem alguma vez em sua vida sempre terão o que esconder, esteja sempre acima da situação e muito ciente disto. Não deixe de viver uma vida plena; jamais! Com o tempo, você irá perceber que a vida nos leva como pêndulos; ora você estará mais perto de um polo, ora mais perto do outro... O importante é que você esteja desenvolvendo desejos sinceros do seu coração. Perto do fim, é muito provável que você fique com uma certa tristeza por não ter atendido a alguns desejos profundos da sua alma ao longo da vida, mas também irá ficar com uma saudade nostálgica por ter vivido tempos que não voltam mais... E assim é o tempo: serve para nos modificar sem que nós consigamos modificá-lo! Ainda, espero que você compreenda que as decisões mais difíceis da vida envolvem escolhas, mas não escolher implicará em algo paradoxal: o não-viver. Perceba: não se conseguirá atender a múltiplos e variados desejos ao mesmo tempo. Escolha dois ou três objetivos maiores em sua vida e siga-os com honestidade: será, sem dúvida, feliz! Saiba que a dificuldade em escolher existe em todos nós, então não fique triste em ter que deixar outros desejos seus sem serem devidamente atendidos por ter que se dedicar a dois ou três deles. Este tipo de escolha existe para justificar duas coisas bem evidentes: a primeira é que você somente irá seguir aquilo que sinceramente deixar em júbilo o seu coração; a segunda é que, em tendo que fazer estas escolhas, você se regozijará com a grande variedade de possibilidades que a vida pode nos dar, mas sabendo que a sua posição antes do último suspiro dependerá precisamente destas escolhas.
   Querido Théo, poucas pessoas compreenderão do que falarei agora. Mas a beleza na vida reside particularmente na assimetria, e não na simetria. É interessante de se perceber que algumas pessoas são mais autênticas do que outras justamente por não viverem o equilíbrio sublime tão almejado por todos nós e a verdadeira pedra angular da vida, que jamais será, infelizmente ou felizmente, atingida. Perceba que o puro equilíbrio nos deixa numa vida sem saída, mas a busca deste equilíbrio é o que dá sentido a muita coisa em nossas vidas. As virtudes são diferentes entre as pessoas, e isto dá a medida do desequilíbrio entre elas, mas é o que dá uma nobreza e uma beleza à existência, já que seremos muitas vezes imprevisíveis porque nunca estaremos no equilíbrio eterno - o equilíbrio eterno é a ausência de vida, mas, repito, a BUSCA por este equilíbrio é o que nos move, é o que nos faz tentar ser alguém melhor ao longo desta nada fácil passagem por esta grande quase-esfera azul; assim, a assimetria é a beleza da vida, o medo de errar por se reconhecer deste jeito ou daquele outro, mas também a certeza de estar sendo sincero consigo mesmo. Desta forma, o encanto está no assimétrico, porque nada à direita é igual ao que está à esquerda, e nem o que está acima é igual ao que está por baixo, e nunca vi um sorriso belo ser simétrico, e é particularmente aquele olhar ligeiramente vesgo, aquele sorriso meio torto, aquele cabelo mais assanhado do que penteado que chama a atenção no sentido bom do termo. Nunca se angustie com a simetria, esta é muito difícil de encontrar, posto ser incompatível com o viver; com ela, não haveria necessidade de continuar a caminhada... Mas, repito, é importante que se continue buscando por ela, pois 'o caminho é o fim, mais que chegar'!

O sorriso de Théo!
   Querido Théo, espero, do fundo do meu coração que você possa atender ao chamado de sua vida no momento oportuno, e não tenha medo de viver, pois você será sempre único e detentor de uma alma imortal, e o fim não poderá ser diferente da busca por Beatrice, nunca! Então, viva cada segundo, e seja suave diante do áspero, porque viver uma coisa de cada vez irá te levar, sem dúvida alguma, mais longe, e ao ter passado mais devagar pelos segundos da vida, irá levar mais coisas na memória do seu coração e por toda a vida você será grato por estar podendo desfrutar daquela nostalgia que, facilmente compreenderá, justificará seus adiantes, seus degraus, seus veraneios vividos. E gostaria de registrar que a outra parte da inspiração para escrever tudo isto, já que a maior parte foi a sua existência pura e simplesmente, ocorreu-me de um outro cuidador dos males de que padecem as pessoas. Ao ler o Carta à minha filha em prantos, José Geraldo Vieira me mostrou com muita sinceridade o que é amar um filho e, em cheio, o que é atender a um chamado às armas. Depois de ler este livro, eu não poderia viver sem angústia se não atendesse a um chamado muito parecido com o do autor do mesmo. É belíssima a forma como ele coloca como a sua alma precisava atender ao chamado das letras. Vejamos o que ele escreveu:

   'Um artista, minha filha, que escreve por vocação e cumpre a eficiência desse artesanato dia e noite, mesmo que escreva trancado numa mansarda acesa, está exposto à vida, como uma antena. Tinha eu, como tenho, a felicidade dentro de casa, na asserção íntima, categórica, naquilo em que ela consiste como essência temporal, objetiva e subjetiva. 
   Uma família é um agradável compromisso corporal e espiritual, de fundo sacramental e de plano ético, pressupondo deveres naturais e mesmo excepcionais. Mas mesmo com a família, o artista é um ser que por mais arraigado nela, opera extra-muros, recebe de fora, aceita, prepara e devolve o que o mundo lhe entregou como problema e ele tem que resolver como solução pelo  menos estética; humana se possível; quando não, sobrehumana. Está plantado na família como a cruz num altar, mas, como a cruz, tem os braços para o oriente e para o ocidente. Essa intersecção do longitudinal com o transverso forma um campo de imantação, do qual ele, o artista, é o núcleo; a vida, o primário; e a arte, o secundário. Daí ocorrem fenômenos que só poderei comparar aos do eletromagnetismo. Publiquei, por exemplo, o meu romance de estreia em 1931. Um livro é sempre uma mensagem decifrada. (...) Longe estava eu de supor que tal livro podia representar uma sublimação na minha sensibilidade.
   Nasceu, então, meu segundo romance, cuja Segunda Parte é uma distorção duma dada realidade subjetiva e interior, de dédalo, cujo itinerário helicoidal foi seguido em clima sparkenbrockiano. Esse mundo pequenino, íntimo, enquistado dentro de mim como o mecanismo de um relógio no pulso da alma, era a forma infinitesimal duma grandeza exterior, vivida, sentida, mas que eu reduzia a um microcosmo, assim como quem, estando num litoral firme, real, enxuto, só se atreve a ver, sentir e viver a vida duma ilha distante, pelo que da ilha se reflete pequenino, translúcido, microscópico, quase, num binóculo posto ao contrário.
   Mas a ilha - e eu sou filho de gente de arquipélagos - aquela ilha posta lá longe, presente mas intocável, com bosques, mas apenas na distância uma mancha verde; com uma escadaria, mas apenas traços ao longe; aquela ilha um dia avisou que ia sumir nas vagas, como um atoll de coral que submerge... Mas que antes de submergir envia à antena que escuta um SOS, não de salvação e socorro, mas de compressão grata e despedida nobre...'

José Geraldo Vieira (1897-1977)
   Querido Théo, mas este livro, acima referido, foi escrito de um pai para tentar ajudar a mostrar a uma de suas filhas o que ela representava em um momento de grande angústia na vida desta; prestes a se casar, a filha descobre que seu noivo, aviador, foi convocado para a guerra. Ela chora desconsoladamente, e seu pai é chamado para afagá-la. Ele, então, escreve uma carta para esta filha, que se encontra em prantos. No meu caso, percebi claramente o chamado às letras do autor, simpatizei com este chamado e, impulsionado pela indescritível inspiração e missão de ser pai e pelo seu sorriso inigualável e incomparável, que tão bem aperta meu coração de forma macia, suave, e que me faz querer dar uma pausa nas coisas outras da vida e somente te observar e te mostrar as coisas deste mundo, é que fiz esta carta; cada sorriso seu ao longo deste primeiro ano foi um pulso de ânimo e me mostrava porque deveria ir adiante, porque deveria continuar. Talvez você, meu filho, não se habitue a escrever cartas com o próprio punho; no nosso tempo, isto quase não mais existe, e temendo que você não pudesse ter acesso a algo escrito, ou que pudesse se perder, resolvi deixar registrado tudo o que eu, como pai, gostaria de te ensinar. Sei que os filhos mais aprendem por meio de exemplos, por meio de gestos e ações que observam dos próprios pais, mais do que por meio do ensino oral e determinístico; entretanto, todo bom pai sabe que, no fundo, gostaríamos que os nossos filhos aprendessem somente o melhor de nós, e que os erros dos pais pudessem ser corrigidos no aprendizado que seria absorvido pelos filhos. Temendo não ser assim, e sabendo que, independente de qualquer coisa, você terá virtudes, mas também alguns vícios, escrevo estas breves palavras para uma, espero e muito desejo, longa vida sua, meu filho.
   Querido Théo, tem uma pequena peça musical que, se a mim fosse perguntado que música melhor definiria a minha impressão sobre você, diria que esta é a música que o define, meu filho. Quando Robert Schummann escreveu Kinderszenen (Cenas da Infância) ele estava profundamente apaixonado por Clara Wieck, que logo se tornaria a sua esposa, a despeito das objeções do pai autoritário dela. O compositor trabalhou fervorosamente na composição destas peças, e as concluiu em apenas alguns dias. Na verdade, ele escreveu em torno de trinas pequenas peças, mas as reduziu para um total de treze, que são as que compõem, atualmente, o conjunto de Kinderszenen. Elas são simples em termos de execução. Obviamente o tema lida com o mundo das crianças, mas Schumann ressaltou que elas não foram intencionadas ou projetadas para crianças. A canção que, para seu pai o define, meu filho, é a sétima e mais famosa do conjunto: Träumerei (Sonhando). É uma representação da inocência, vulnerabilidade e delicadeza da infância. O tema é docemente inocente e sentimental, claramente representando a visão apaixonada que Schumann tinha de sua própria infância. A melodia é inesquecível, a harmonia simples, mas distinta, e o clima geral é de sonho e calmaria. Entre os vários temas desenvolvidos sobre a infância pelos grandes compositores, a melodia de Träumerei é uma das mais memoráveis. A peça no todo dura menos de três minutos, mas é a mais longa no conjunto do Kinderszenen.

Robert Schumann (1810-1856)
Clara Wieck (1819-1896)


   Querido Théo, tanto que escrevi que o sentido de nossa existência não é, senão, amar. E tanto que apresentei situações que, tenho certeza, servem para que você aprenda mais sobre o amor e tenha provas de que ele é o maior dos sentidos. Mas não foi em obras mais recentes que se percebeu isto; um grande homem, cuja biografia é a maior das redenções, escreveu, há muito, tudo o que se pode escrever para que se compreenda perfeitamente do que se trata o sentido de nossa existência. No livro mais importante já apresentado a nós, humanos, São Paulo nos toca profundamente, porque dá sentido à nossa efemeridade e concatena todos os pontos mais afastados de nossa alma, mostrando a maior das verdades. Lembre-se, meu filho, o amor é a maior das verdades! Está lá, na Primeira Epístola aos Coríntios, Capítulo 13, no nosso Livro Sagrado!
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.
2 E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.
3 E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.
4 O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece.
5  Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal;
6  Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
7  Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
8 O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá;
9  Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos;
10  Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado.
11 Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.
12 Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido.
13 Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor.
   Querido Théo, mas quando estiver perdido numa selva escura e não souber mais por onde ir, volte e recomece. Não viva uma nostalgia ruim, mas uma saudade boa, e que os fundamentos e imagens da infância possam recorrer ao longo de sua vida para guiá-lo e lembrá-lo porque você é como é, e que nunca se arrependa por não ter tido uma vida plena. Que esta próxima música que seu pai organizou com tanto carinho possa te servir de lição (Ps: assista em tela cheia e alta definição).


   Théo querido, assim escrevo esta pequena carta em tamanho para que ela seja grande em conteúdo, para que, ainda que muito pouco eu mesmo tenha vivido, possa servir de linhas retas para sendas tortas no curso de sua vida. E agradeço pela inspiração de sua existência, que me faz muito feliz e que diariamente me lembra, com o seu sorriso, espelho mais sincero das profundezas de minha alma no instante em que me aproximo de você, o que representa a nossa eternidade na difícil arte de aceitar a efemeridade da vida. Acredite na transcendência, meu filho, pois toda a inspiração que você me trouxe, e traz, permitiu-me atender ao mesmo chamado do 'descendente de arquipélagos', e que sejamos, enquanto pai e filho, uno e crentes nos desígnios de Deus. Théo querido, seja breve, seja amplo, seja eterno! Feliz primeiro ano de vida! Seu pai!